/GASOLINA E FÓSFORO – 120 ANOS DE CERCO À FAVELA

GASOLINA E FÓSFORO – 120 ANOS DE CERCO À FAVELA

GASOLINA E FÓSFORO – 120 ANOS DE CERCO À FAVELA

Por ironia da história, a favela surgiu do mais covarde massacre já perpetrado pelo Exército brasileiro: a Guerra de Canudos. Pouco depois de se estabelecerem ali os soldados que destruíram completamente o arraial sedicioso, o conjunto de casebres improvisados preocupava as autoridades. Em 1900 a localidade já era vista como um antro de vícios e covil de marginais. Um delegado propôs um cerco, vejam só, para depois oferecer a solução final: o arrasamento dos barracos e a evacuação de toda aquela população indesejada em nome da saúde pública.

Quando da repressão à Revolta da Vacina, em 1904, novamente aquele território inimigo foi sitiado e invadido, em busca dos participantes deste grande levante popular que deveria ser transformado em feriado e festa cívica. De nada adiantou porque a turma da favela já esperava aquilo e se pirulitou por uns tempos. Em seguida, na década de 20, contrata-se um urbanista francês para dizer o que fazer com a favela. Novamente a recomendação era a retirada daquela população “provisória” (assim ele a chama) a ser substituída por funcionários públicos e outros moradores de classe média decente.

O Estado-Novo não fez por menos: Vargas planejou a retirada de todos os moradores das favelas cariocas e sua realocação em Parques Proletários. Chegou a transferir oito mil moradores de favelas para dois parques proletários, na Gávea e no Caju. Uma das favelas destruídas foi incendiada ritualmente inclusive com o auxílio luxuoso do chefe do corpo de bombeiros. O Brasil sempre inova, não é mesmo? Em outros lugares o chefe do corpo de bombeiros é chamado para apagar o fogo. Nos parques proletários tinham direito a rink de patinação, refeitório, igreja e o indefectível posto policial, além da palestra civilizatória do administrador batizada pelos moradores de chá das nove. A porta do Parque Proletário fechava às 10 da noite. Uma estratégia de controle absoluto, uma espécie de cerco permanente.

A década de 60 é inaugurada pela agressiva política de Carlos Lacerda, governador do então Estado da Guanabara, que usa as verbas da Aliança para o Progresso enviadas por Kennedy para “remover favelas” e construir conjuntos habitacionais – sempre em lugares distantes – como a Vila Aliança e a Vila Kennedy. O projeto original previa até cinema, coisa que os moradores jamais chegaram a ver. A Ditadura Militar exacerbou o modelo de Lacerda, sobretudo na sua fase mais dura, entre 1968 e 1973. Foram mais de cem mil pessoas retiradas à força, avisadas em um prazo curtíssimo e encarregadas de esperarem os caminhões de mudança já com as suas coisas na rua. Muitas vezes as autoridades também punham fogo nos barracos agora vazios para evitar o retorno. Curiosamente, as primeiras favelas a serem “removidas” nesta segunda onda ficavam em áreas de alto valor imobiliário como a Lagoa, Humaitá e Leblon.

Corta para a década de 90, quando eu fazia uma etnografia da favela de Acari e visitava também outras favelas como Vigário Geral. Em Acari, como já publiquei, a minha impressão era estar numa aldeia vietcong sob a ameaça de um ataque a qualquer momento, devido à frequência e variedade de ações policiais. Um dos moradores me disse que não estava saindo da favela por estar sem “passaporte”: a carteira de trabalho. Jovem e historico-sociologicamente negro, ele conhecia muito bem a opção preferencial das forças policiais.

Em Vigário Geral, o artista Valmir do Valle disse-me que as pessoas do bairro diziam que a única solução para a favela seria gasolina e fósforo. Recentemente um pretenso candidato a presidente, não por coincidência um militar aposentado, afirmou que seu plano para acabar com a “bandidagem” seria cercar as favelas e anunciar – talvez do alto de helicópteros – que os criminosos teriam que sair em 6 horas. O que aconteceria depois? Gasolina e fósforo?

Acho que certas situações são tão absurdas que somente a literatura pode dar conta. A enésima intervenção militar é um cerco a uma parte bem específica da cidade, que é vista há mais de um século como a origem de todos os nossos males. Não é dirigida ao Rio de Janeiro como um todo, não tem como alvo todas as classes sociais e obviamente faz distinção de “raça.

Isso faz me lembrar um conto bem humorado de Italo Calvino chamado “O regimento desaparecido”. Começa com um regimento militar rigidamente perfilado e pronto para desfilar em uma cidade, sem que nós jamais saibamos o objetivo. Nem eles. A tropa, comandada com voz de ferro, faz sua entrada triunfal, para a surpresa dos moradores e os próprios militares se percebem como sem sentido, fora do lugar. Soldados apenas seguem ordens e um marcha atrás do outro sem saber direito aonde está indo e para não incomodar muito, começam a fazê-lo na ponta dos pés.

Em cima do seu cavalo, à frente do regimento, o Coronel Clelio Leontuomini retoma o controle da tropa, manda rufar os tambores e obriga todos a marchar em passo de parada. Mas a vergonha que toma conta de soldados e oficiais faz com que marchem de cabeça baixa, sem olhar para frente. O próprio comandante deixa de olhar para onde estão indo e quando percebe conduz a tropa por cima dos jardins públicos, decididamente “pisoteando ranúnculos e lilases.” Um jardineiro, involuntariamente, acaba molhando o Coronel Clelio, que de início confunde aquela água de mangueira com uma inundação e fica decepcionado que não o seja, pois assim ele e sua tropa poderiam afinal fazer algo pela população.

Querendo cortar caminho para alcançar a praça, o coronel acaba levando seus comandados para um bairro não previsto no trajeto, todo feito de pequenas e estreitas ruas. Um bairro de trabalhadores e estudantes. O comandante logo tem que admitir que está perdido. Sendo assim, pergunta a um passante pelo caminho até a praça. O homem diz conhecer um atalho que economizaria 15 minutos, embora fosse um pouco tortuoso.

Depois de atravessar um pátio, descobrem que teriam que subir um prédio, deste passar a outro e então descer em direção à praça. As peças de artilharia e os cavalos tiveram que ser deixados para trás. À medida em que iam subindo, as famílias, pai, mãe e crianças, convidavam-nos a entrar e descansar um pouco. Deixando os fuzis no corredor, é claro. A esta altura o homem que havia recomendado aquele caminho desaparecera. O coronel consegue chegar ao terraço, com alguns homens, nas mãos dos quais ainda há faixas coloridas para emitir sinais. É aí que reconhecendo o seu fracasso completo ele pede que transmitam a mensagem:

“Zona impraticável… Impossível prosseguir… Aguardamos ordens”