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A glória do Embalo

A GLÓRIA DO EMBALO

Reza a lenda que os primeiros a jogar futebol nestas plagas foram marinheiros ingleses e escoceses que aproveitaram seu dia de folga para bater uma bolinha na praia. Sendo assim, podemos dizer, sem medo de errar, que é bem possível que o futebol brasileiro tenha nascido na areia.

Esqueçam o Beach Soccer, esporte criado para a televisão. Estou querendo falar do bom e velho futebol de praia. É e não é futebol. Tem trave igual, onze para cada lado e a bola é redonda sim senhor. Mas em compensação tem uma dinâmica completamente diferente. A areia dificulta tudo: correr, passar, dominar a bola, chutar, cruzar. Aqui o acaso reina inconteste. Os jogadores têm que ser, ao mesmo tempo, excelentes atletas e verdadeiros malabaristas com a bola, uma fera difícil de domar devido aos “acidentes” do terreno.

Ao mesmo tempo, os choques físicos tornam-se ainda mais frequentes e imprevisíveis: voa areia para todos os lados e mal se vê o que está acontecendo. Quem tem de cuidar de tudo é o juiz, secundado por dois bandeirinhas. Nem ele nem seus auxiliares têm qualquer proteção: os torcedores das duas equipes estão ali junto às “linhas” do campo, reclamando, xingando, ameaçando. Arnaldo Cézar Coelho, que já apitou final de Copa do Mundo, começou na praia e lembra que sua maior virtude como juiz era ser bom nadador: inúmeras vezes fugiu de uma torcida enfurecida correndo na direção do mar.

Neste sábado, por exemplo, vi um tempo de cada um dos jogos semifinais do Campeonato Carioca de Futebol de Praia: o São Clemente eliminou o Paula Freitas e o Balança derrotou o Racing. Teve de tudo um pouco. O São Clemente veio com a bateria da escola de samba do mesmo nome, que tocou animadamente o jogo todo. O Balança, após conseguir a vantagem de 2 a 0, que o classificava para a final, dedicou-se a rebater a bola com toda a força na direção da Avenida Atlântica ou do próprio Oceano Atlântico mesmo, para desespero do Racing, cujos torcedores ficavam de plantão para correr atrás da redonda. Teve também um bandeirinha que não aceitou o xingamento de um jogador e partiu pra cima do mesmo de bandeira na mão, tendo que ser contido por vários jogadores. No final das contas, terminou tudo bem, nesse futebol por enquanto livre do marketing e de outras pragas do profissionalismo.

Há poucas coisas mais democráticas do que um sábado de sol em Copacabana. E os dois jogos deste sábado, me transportaram para um distante sábado de 1984, no final da praia do Leme, quando da partida decisiva entre Embalo e Areia. Os dois times não poderiam ser mais diferentes. O Areia também era do Leme, mas era formado por rapazes de classe média, com um uniforme lilás patrocinado pela Company, a principal grife da moda naquela época. O Embalo, dotado da poderosa combinação rubro-negra, era o time do Morro do Chapéu Mangueira e da Babilônia.

O Areia tinha bons jogadores, sem dúvida, incluindo dois pontas bastante velozes. Mas seu símbolo maior era um beque gigantesco, um louro desprovido de sorrisos com o gentil e sugestivo nome de Madeira. Madeira era daquele tipo de defensor que desaprova veementemente a circulação de atacantes na sua área. Quanto à sua técnica, digamos que usava sua perna direita como se fosse pau de dar em doido.

Do outro lado, o Embalo tinha um time bem menos imponente fisicamente falando. Mas tinha dois bons laterais, um negro retinto chamado Galocha que administrava o meio de campo como se fosse um mestre de bateria e um magnífico camisa 10. Camisa 10? Aos mais jovens eu devo explicar que antigamente o camisa 10 não era somente o sujeito que vestia uma camisa com o número 10 às costas. Camisa 10 era o encarregado de produzir o inesperado. Ninguém em campo tinha um físico mais modesto do que o camisa 10 do Embalo e seu nome parecia refletir isso: Saquinho, um mulato sarará dotado de uma perna esquerda carregada no dendê e na pimenta.

Não vou repetir todos aqueles chavões de jogo duro, lá e cá, muito disputado etc e tal. Vamos logo ao que interessa. Talvez pensando em evitar uma aposentadoria precoce dos campos e quiçá de sua permanência no planeta, Saquinho esteve meio apagadão até os 35 do segundo tempo. A partir daí começou a mostrar todo seu repertório: viradas de jogo para pegar a defesa desprevenida, lançamentos em profundidade, alguns chutes de longe… Mas ficava sempre longe da área. Madeira parecia assistir aquilo tudo como um leão que espera a zebra passar a uma distância apropriada para o bote fatal.

Lá pelos 40 da etapa derradeira, Saquinho dá uma arrancada daquelas de arrepiar a torcida do morro, presente em massa. E lá foi ele, deixando literalmente na areia um, dois, três adversários. Até que… Madeira sai da área com um intuito impublicável e faz Saquinho voar como se fosse acrobata de circo, dando voltas no ar até beijar a areia. Saquinho ficou um bom tempo na areia. Não era só dor, creio eu. Ele já estava se concentrando para fazer o que fez.

A falta era na quina da grande área pelo lado direito do ataque, ideal para um canhoto. Na areia, o montinho é inimigo mas também é amigo, na hora de bater uma falta, por exemplo, fica mais fácil bater por baixo da bola e levantá-la. Saquinho ajeitou a bola como se estivesse colocando um filho de seis meses no berço. Alguns cronistas dizem que ele a beijou. Eu sou daqueles que acreditam que ele falou com a redonda, com a intimidade do craque: meu amor… A defesa do Areia parecia um comercial da Company, quer dizer, parecia a muralha de Tróia. Madeira despontava no centro feito um estandarte Lilás.

Saquinho partiu, pisando a areia feito um bailarino. Gingou o corpo para um lado proporcionando o ângulo ideal para bater na bola com carinho. Nem filme do Spielberg tinha tanto efeito quanto essa pelota, girando feito um dardo mortal na direção da meta inimiga. O goleiro até que saiu bem na foto, se esticando desesperadamente na direção e uma bola que ele sabia que nunca iria pegar. Na minha mente a bola estufou a rede fazendo um barulho tão gostoso quanto um mergulho no mar de Copacabana. Saquinho foi engolido por um mar de camisas rubro-negras, suadas, cheias de areia e dor.

Essa foi a Glória do Embalo em 1984. Só tem um detalhe. Eu lembrava vividamente deste jogo, do golaço do camisa 10 e tudo mais. Desgraçadamente, fui consultar a Internet. O gol da vitória foi do centroavante do Embalo, Palhaço, aos 9 do primeiro tempo. Parodiando Nelson Rodrigues, pior pra Internet.