/A INCOMPARÁVEL DONA MARLENE

A INCOMPARÁVEL DONA MARLENE

A Rua dos Unidos é uma estreita viela que desemboca no Larguinho, uma microárea da Favela de Acari. No número três ficava a casa de Dona Marlene, onde reinava inconteste sobre marido, filhos, noras, netos e  bisnetos. Quando ali entrou pela primeira vez, no fim do ano de 1995, o jovem e tímido antropólogo não sabia que iria conhecer alguém que o mudaria para sempre. O trabalho  de campo em Acari não teria sido possível sem que Dona Marlene o tivesse adotado e, de certa maneira, indicado a seus filhos que deveriam ajudar e tomar conta daquele branco medroso que não sabia onde estava se metendo.

Quando colocava o pé na favela o sofisticado sistema de informações de Dona Marlene entrava em ação e era difícil que ele chegasse no Larguinho sem que um netinho viesse avisar que vovó já estava esperando. Almoçar em outro lugar? Nem pensar. Ir a Acari era sinônimo de comer o delicioso feijão de Dona Marlene, que sempre pedia a alguém para comprar uma coca-cola para a visita e mandava passarem um café sem açúcar para o moço  com essa mania esquisita. Não sei como, arrancava dele todas as fofocas possíveis sobre a sua vida, como se trocasse feijão por confissões. E ria muito, muito, porque aquilo tudo para ela devia ser brincadeira de criança.

Da infância de Dona Marlene nada sei, acho que deve ter sido tão difícil que ela só teve vida adulta. Sei dos quatro maridos, dos sete filhos, da primeira residência, um barraco de madeira com chão  de terra que inundava quando chovia. Sei da jornada tripla: catava lixo, trabalhava na fábrica e cuidava da casa. Sei da internação por transtorno mental causado pela combinação frequente de café com coca-cola para conseguir ficar acordada. Sei do amor obsessivo e total dos filhos e netos por aquela que de todos cuidava, de tudo sabia e não sossegava enquanto não resolvesse os problemas de sua família. Os filhos e netos que não moravam com ela vinham visitá-la em um ritual muito próximo a um beija-mão. Mas sem formalidade ou pieguice, caso contrário Dona Marlene soltava logo um palavrão, odiava frescura, o negócio dela era a alegria escancarada sem medo de ser feliz.

Como já havia um filho chamado Marco, o antropólogo foi rebatizado de Marco Branco, um filho adotivo desajeitado que não sabia jogar bola direito e a quem tudo tinha que ser explicado, já que nada sabia. Não houve ciúmes, os filhos tinham certeza de que no coração de Dona Marlene sempre cabia mais um filho, um neto, um sobrinho, desde que aceitassem ser súditos leais. Como disse o poeta Deley, meu guia e conselheiro, Dona Marlene era uma das mães de Acari. Guimarães Rosa diz que amor vem de amor, mas eu não sei de onde Dona Marlene buscou  tanto amor, ela que não recebeu nenhum quando era menina. Devia ser que nem um daqueles personagens de desenho animado, que caem num pântano de areia movediça e sem ter onde se apoiar e puxam a si próprios pelos cabelos.

Dona Marlene buscava ajuda na religião e todos os dias frequentava o culto, tentava ler, sem muito sucesso a Bíblia – que ela dizia ser muito  difícil , e, principalmente tinha uma fé inquebrantável no  seu Deus. O antropólogo a viu se ajoelhar ao ter a notícia da libertação de um dos seus filhos. Ela jamais duvidou que isso aconteceria. Como dizia, entregava tudo na mão de Deus. Não fazia proselitismo, nem tampouco atacava a religião dos outros.

Uma palavra mágica que fazia seus olhinhos brilharem e sua voz se modificar era Madureira. Quando chegava o Natal, arrastava a única filha e outras mulheres da casa para uma excursão ao paraíso das compras, à terra prometida de onde voltava carregada de presentes para toda a família. Depois detalhava o que cada um iria ganhar e especulava sobre a alegria que o presente iria causar. Generosidade era o traço número um de Dona Marlene. Era uma grande mãe, coisa que ela nunca teve.

Mais para o final do trabalho de campo, quando o antropólogo terminava de escrever a tese, um dia foi  agradecer a Dona Marlene por tudo, mas ela não deixou  que ele o fizesse. Interrompeu-o muito séria e disse:

– Não precisa agradecer. Eu sei o que fiz por você. Quando você chegou aqui, você não sabia nem sorrir, Marcos.

Três anos depois, a tese virou um livro, que seria lançado na livraria da editora da FGV, uma instituição solene e circunspecta. Foi a hora do Marco Branco mostrar que havia aprendido alguma coisa. Alugou duas vans, contratou um conjunto de samba da favela e foi até lá para vir com o pessoal lançar As cores de Acari. Nesse dia, Dona Marlene estava numa felicidade só. Mesmo  sem dizer nada, sabia que aquele livro não teria sido possível sem ela e sua família.

Como é duro me despedir da senhora, Dona Marlene. O Marco Branco vai ficar por aqui enquanto os deuses deixarem, tentando ser digno de constar como um filho, mesmo que branco e bobo, da incomparável Dona Marlene de Acari.

(foto: 1996, da esquerda para a direita: Dona Maria e Dona Marlene, grandes amigas)