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A Rainha de chuteiras – Capítulo 2 – Com que regra

 

Cap.2 – Com que regra? – A Rainha de Chuteiras

Marcos Alvito

Com que regra?

 

Como é que um jogo da ralé, perseguido durante séculos pelas autoridades, veio a se tornar o esporte mais popular do planeta?

Tudo passou pela transformação de um jogo rural violento e selvagem em um esporte praticado nas escolas mais aristocráticas da Inglaterra. Os professores tinham enorme dificuldade em conter pupilos originários de uma camada social superior. Os filhos da aristocracia  desrespeitavam abertamente e eventualmente agrediam seus mestres. Às vezes até botavam fogo na escola. Eram o terror da  região em torno: estupravam camponesas, destruíam pubs, batiam nos aldeões. Entre eles mesmos havia muita violência: os calouros eram tratados pelos veteranos como escravos, partindo até mesmo para o abuso sexual. Os diretores tiveram uma brilhante ideia: dirigir esta energia excessiva e destruidora para a prática de uma atividade física. Acontece que o football que existia até então não servia, era apenas um jogo, ou seja, não tinha regras. Usando o pátio do colégio como campo, aos poucos o football foi se transformando em um esporte, embora de início as regras fossem transmitidas oralmente e variassem de escola para escola. E é claro que durante muito tempo os calouros serviram apenas para marcar a linha lateral. Jogar era privilégio dos veteranos. De qualquer forma, a tática funcionou e aos poucos os diretores conseguiram pacificar um pouco suas escolas. Eram totalmente apoiados pela Igreja, que à época professava a doutrina da “Cristandade Musculosa”, também conhecida por “Corpo são e mente sã”. Cansar os meninos era uma maneira de evitar os pecados.

Os meninos cresciam e logo ingressavam nas melhores universidades, onde chegavam já com vontade de bater uma bola. Mas havia um problema: cada um vinha de uma escola diferente e não havia uma regra comum. Umas escolas, por exemplo, permitiam carregar a bola com as mãos e chutar livremente a canela dos adversários, às vezes até quebrar. Era a regra da escola de Rugby, ou Rugby Football, de onde derivou o primo do futebol conhecido por rúgbi. Outras jogavam pela regra de Cambridge, mais próxima do futebol atual, em que só se usavam os pés. Mas pela falta de uma regra geral, quase sempre havia confusão, como neste relato de um jogo ocorrido em Cambridge em 1848:

“O resultado foi uma balbúrdia total, já que cada um jogava com as regras a que se acostumara em sua escola. Eu lembro como o ex-aluno de Eton urrava quando o ex-aluno de Rugby levava a bola nas mãos.”

Em Londres, onde já havia vinte e cinco clubes de futebol, alguns deles decidem estabelecer uma regra oficial. A turma que se reuniu na Freemasons’ Tavern em 1863 adotou a regra que proibia carregar a bola com a mão e os pontapés (a não ser na bola). Antes mesmo dessa época já havia clubes de futebol, mas antes das partidas tinham que combinar com que regra iriam jogar. Muitas vezes jogavam o primeiro tempo com a regra de Rugby e o segundo com a regra de Cambridge, mais próxima do nosso futebol.

Fac-símile da Regra número 1 do futebol, tal qual foi estabelecida em 1863. Ela dizia:

“O comprimento máxima do campo será de 200 jardas (182 metros aproximadamente), a largura máxima será de 100 jardas (91 metros aproximadamente), o comprimento e a largura serão marcados com bandeiras; e os gols serão definidos por dois postes na vertical, com 8 jardas (7,3 metros) de distância entre eles, sem nenhum tipo de fita ou barra entre eles.”

Na tarde de uma segunda-feira, 8 de dezembro de 1863, depois de algumas reuniões regadas a cerveja, estava criada a Football Association e o futebol tinha finalmente sua primeira regra oficial, com treze artigos. Claro que elas são muito diferentes das regras de hoje. Os limites do campo eram marcados somente por bandeiras. As balizas, por exemplo, tinham traves, mas não tinham travessão. Um gol era marcado sempre que se chutasse entre as traves, mas em qualquer altura. A cada gol havia nova saída como hoje, mas antes os times mudavam de lado. Não se podia carregar ou jogar a bola com a mão, mas todos podiam agarrar uma bola chutada para o alto, colocá-la no chão e depois chutá-la.  Ou seja, não havia goleiro. Não havia nenhuma menção ao tempo de duração do jogo, nem tampouco ao número de jogadores em cada time. E havia regras que hoje parecem absurdas, mas que diferenciavam as regras do Association Football do Rugby Football, como a regra 10, que proibia pisar, dar pontapés, segurar seu adversário com as mãos ou empurrá-lo, ou a regra 13, que bania o uso de unhas postiças e chuteiras com traves ou biqueiras de ferro…

Aos poucos a F.A. vai modificando as regras, sempre no sentido de distanciá-las cada vez mais do Rugby Football. Em 1865 é criado o “travessão” – de início apenas uma fita entre as duas traves, estabelecendo uma altura para a baliza. Em 1870, só o goleiro passa a poder agarrar a bola com as mãos.  Os noventa minutos de jogo passam a estar na regra a partir de 1877. Todas são regras que valem até hoje.

Na verdade, nada garantia que as regras estabelecidas pela Football Association fossem vingar e tornar-se a regra oficial do futebol. Em lugares como Sheffield, no norte da Inglaterra, já havia regras locais e clubes que jogavam segundo as mesmas antes de 1863. Até então, não existia nenhuma forma de campeonato: os clubes jogavam entre si a partir de convites feitos por um deles. As regras eram combinadas ad hoc, só valiam para aquele jogo. Hoje estamos tão acostumados aos mais diversos tipos de competição que temos dificuldade em imaginar que só existissem o que chamamos hoje de “jogos amistosos”.

O pulo do gato da Football Association só veio oito anos depois da sua fundação, com a criação da F.A. Cup (Copa da Inglaterra) em 1871. Diz-se que a inspiração para aquele tipo de competição eliminatória veio dos campeonatos de brigas-de-galo; deve ser por isso que até hoje elas são chamadas de torneios “mata-mata”. Pela primeira vez havia uma competição entre clubes, organizada a nível nacional. Ela começou com poucos times, a maioria deles do sul da Inglaterra. Na primeira final, o Wanderers, um clube formado por ex-alunos de Oxford e Cambridge, bateu o Royal Engineers em Londres por 1×0, diante de 2000 espectadores. A F.A. Cup dá uma outra dimensão ao futebol, tornando os jogos mais emocionantes e capturando a imaginação, sobretudo da classe operária. O número de membros da Football Association cresce enormemente: os 11 da época da fundação passam a 50 quando da primeira F.A. Cup em 1871 e em 1888 já eram 1.000. Ligas regionais pipocavam por todo o país, adotando a inspiração e as regras da Football Association. Em Sunderland, por exemplo, no norte da Inglaterra, em 1889 eram disputadas noventa partidas por semana e havia mais de 200 clubes.

Tudo isto é permitido e facilitado pela implantação e ampliação da rede de ferrovias que garante o estabelecimento de uma competição a nível nacional. Atletas e espectadores podem viajar para jogar e assistir e os jornais contendo resumos e resultados dos jogos podem ser distribuídos por todo o país.

A rapidez com que o futebol se populariza é impressionante. O motivo é simples: a ralé, que inventara o jogo e o havia praticado durante séculos (sendo perseguida por isso), adere imediatamente ao novo esporte. Mas agora ele era jogado nas cidades, pelos operários que fizeram a Revolução Industrial, ganhando salários miseráveis e vivendo em cortiços insalubres. E aos poucos a classe operária, organizada em sindicatos, vai conseguindo melhores condições de vida, arrancando melhores ordenados dos patrões: calcula-se que entre 1850 e 1914 tenha havido um aumento de dois terços no valor real dos salários. Agora já sobrava um dinheirinho para frequentar o music-hall, beber umas cervejas no pub e frequentar o futebol.

A par da melhora salarial, conquistaram também a redução da jornada de trabalho sobretudo a partir de 1870 – década em que o futebol começou a dar um salto de popularidade. A vitória mais significativa foi a obtenção da meia-jornada no sábado, configurando a chamada “semana inglesa” invejada por trabalhadores de outros países. Por isso, até hoje, o horário tradicional do futebol na Inglaterra – cada vez mais desrespeitado pela televisão – é sábado às 3 horas da tarde, a hora em que o pessoal largava o macacão e calçava as chuteiras ou ia para os estádios.

Jogado ou assistido, o novo esporte logo vira o principal divertimento dos habitantes da cidade, juntamente com o álcool, é claro. Até as mulheres jogavam, apesar da oposição da Football Association, que proibiu os clubes de manterem equipes femininas em 1902. Mas entre os homens o futebol continuava a todo o vapor. Todo mundo lucrava: o industrial via seus operários satisfeitos criarem mais um vínculo com a fábrica, o dono do pub vendia mais cerveja, os jornais saíam como nunca, surgem fabricantes de material esportivo prometendo a bola mais redonda e a chuteira mais possante. Além dos times de fábrica, surgem times de Igreja, times da turma que frequentava um pub e, é claro, times de profissionais liberais e aristocratas. E à medida que a Inglaterra expandia seu império, o futebol ia ganhando o mundo até transformar-se no esporte mais popular do planeta. Mas o sucesso iria impor transformações ao futebol.

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