/ADELINA (romance) – Capítulo 3

ADELINA (romance) – Capítulo 3

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 3 – 1817 – Adelina

Bochechas redondas, ventres inchados, caras sem cor. Sapos. Eles vão chegando devagar, depois da sesta. Enquanto eu e Rosa nos matamos de trabalhar, esses brancos não fazem nada e ainda dormem depois do almoço. Que uma escrava preparou. Lá pelas quatro da tarde, começam a aparecer no Largo do Palácio, sentados na amurada junto ao mar, para desfrutar o vento. Essa hora, quando acordam cheios de sede, é o melhor momento para vender refresco de aluá. Caprichamos no abacaxi e no gengibre. Um ano depois da minha chegada, já domino a língua deles. A língua falada e o que dizem as mãos. Já sei quais fregueses vão criar problema. Sem falar nos que não querem pagar. Acham que podem fazer o que quiserem com duas escravas.

Rosa me ensinou. Acordar no silêncio profundo anterior ao canhão, bem antes do sol. Banhar o corpo com tranquilidade. Dar uma olhada na roupa do dia, costurar um pequeno rasgão. Ajeitar bem o vestido e escolher um pano da costa vistoso para se cobrir. Arrumar com carinho o turbante vermelho. Brincos nas orelhas, colares no pescoço, anéis, braceletes. Não esquecer dos balangandãs. Sair com uma roupa impecável, branca, bem limpa, cheia de rendas. Usar tudo que enfeite e encante.

Tenho que exibir um andar elegante, mas sério. Rebolar será visto como um convite. O mel tem que estar na voz que anuncia a mercadoria. Falando na língua dos brancos, de um jeito negro, abrindo bem a boca, devagar e de forma cantada. Eles adoram. Olhar nos olhos, com uma pitadinha de malícia, apimentando. É necessário, mas perigoso. Evitar ficar muito perto e se for o caso dar uns passinhos para trás. Porque esses brancos, portugueses ou brasileiros, têm trinta braços, todos querendo te tocar. Primeiro roçam na mão na hora de entregar o vintém. Depois querem passar a mão no teu rosto, botar a mão na cintura. Acham que toda escrava pode se transformar em prostituta. Eles têm certeza de que toda escrava é uma prostituta.

Não podem adivinhar que sou de Mukongo e serei sempre dele.

Nunca vou entender. São loucos pela gente. E não somos nada para eles. Muitas de nós, principalmente as mais jovens, que acabaram de chegar, são

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seduzidas por promessas de alforria e de casamento. Ficam grávidas e são largadas à própria sorte. Luzia chegou em nossa casa quatro meses depois de mim. Era uma mocinha benguela bem magra, pequena, com pernas finas e olhinhos engraçados. Nós a recebemos como se fosse uma filha, pois eu e Rosa sabemos o quanto é difícil se acostumar com a vida de escrava. Luzia era carinhosa com as crianças, que gostavam do jeito de menina que ela tinha no corpo e na alma. Engordou, ganhou curva de mulher.

Rosa e eu procuramos avisá-la, mas ela se apaixonou por um soldado estrangeiro, um mercenário. Todos os dias ele trazia algum presentinho quando se encontravam no Largo do Palácio, onde Luzia vendia frutas. Logo começaram a dar suas escapadas. Ela desaparecia e voltava um par de horas depois, feliz e sonhadora. O branco de cabelos louros prometia comprar sua liberdade e levá-la com ele na canoa grande para uma terra onde não havia escravos, onde seria a dona da casa.

Começou a enjoar, percebeu que a barriga estava crescendo. Havia uma outra vida dentro dela. Cadê o homem? Já tinha embarcado para longe. Luzia tinha ficado. Ela e a bola de vergonha que carregava. Era difícil tentar impedir aquela manada de abusados antes, imagine agora. Ela sentia uma mistura venenosa de raiva e tristeza.

Ainda não era o pior. Ver seu filho ou filha nascer para ser marcado a ferro feito gado. Uma coisa vendida, alugada, usada e abusada nas mãos de brancos e brancas. Passar a vida toda sonhando com a liberdade. Ser humilhado todos os dias. Ter que obedecer sem reclamar. Calar. Viver sempre com medo do castigo, do açoite cortando a carne, dos grilhões aprisionando e machucando. E se sentir culpada por isso tudo.

Nas casas dos brancos, antes de falarem direito, negrinhos e negrinhas são tratados como animais de estimação. Podem andar nus à vontade, recebendo os restos da mesa, que sinhô e sinhá lhes dão como cachorrinhos. Mais crescidos, viram brinquedo do sinhozinho ou sinhazinha, que já começa a treinar as maldades com eles. Um senhor de escravos tem que ter um coração de pedra e eles aprendem isso desde cedo. Dá-lhe de bater no neguinho, de montar no neguinho feito besta de carga, e de fazer coisas que prefiro não falar.

Eu nem conhecia a palavra liberdade. Só vim a compreender o que era quando a perdi. Como escrava de ganho, posso me movimentar ao longo do dia, fazer de conta

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que não estou no cativeiro. Rosa e eu saímos de casa bem cedo, assim que aprontamos as coisas. Antes do almoço, damos uma parada. Se já vendemos o suficiente, vamos até o mercado de peixe. Ali gastamos algumas moedas com as quitandeiras para comer do jeito que gostamos. Temos em mente juntar algum dinheiro a mais na bolsinha de couro depois de entregar o valor da diária à sinhá. É assim, diz Rosa, que em alguns anos poderemos comprar nossas alforrias. Sou mais pessimista, digo que vai acontecer sim, quando formos velhas e sem forças feito essas negras esfarrapadas e maltrapilhas mendigando um vintém pelas ruas. Parece que o número delas aumenta a cada dia. Mas não vi mais aquela kikulakaji do meu povo.

Ninguém parece se importar que elas morram de fome ou de doença. Quando uma delas deixa de viver somos nós que temos que sair pedindo a todos que colaborem para que possam ter ao menos um enterro simples. O que a gente mais vê pela cidade são velhos e velhas abandonados. Sem falar nos negros e negras que enlouquecem. Não conseguindo trabalhar, são jogados na rua como se fossem lixo. Já morreram em vida, com seus olhares passeando por outro mundo que não o nosso. Os brancos têm um feiticeiro muito poderoso. Mas nunca o chamam para tratar de um negro. O feiticeiro branco só cuida de brancos. Nós temos o nosso feiticeiro que nos trata com chás de ervas e ventosas. A vida aqui é tão dura que a morte vive a fazer uma colheita abundante. Para os senhores, basta comprar uma outra peça.

Uma pessoa não é uma peça, não pode ser substituída. Maria Preta era sem igual. Parecia sempre de mau humor, reclamando da infinidade de tarefas de casa que sinhá lhe impunha. Mas falava de um jeito que nos fazia rir. Sinhô e sinhá não param de comer e são muito gordos. Maria Preta só os chamava de sinhô-barril e sinhá-barril. Ela começou a tossir sangue à noite, quando estávamos todas na cozinha, felizes com o fim da jornada de trabalho. Quando vimos a mão dela toda vermelha, já sabíamos que era a escrófula, essa assassina que não cansa de levar negros embora.

Sinhá-barril, radiante com a morte de Maria Preta, queria que ela fosse lançada na vala comum da Santa Casa. Negro não tem direito sequer a uma cova rasa. É lançado feito bicho em um buraco onde ficam amontoados centenas de corpos no meio do lixo. De vez em quando põem fogo para dar mais lugar. Mas reunimos moedinhas para que Maria Preta tivesse direito a uma missa. Com ajuda dos moleques

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da casa, carregamos o corpo dela numa rede, presa a um bambu comprido. Contratamos um tambor, um mbaka conhecido por sua maestria. E o mestre de cerimônias para organizar o cortejo. Entoamos nossos clamores para que mais pessoas viessem se juntar a nós. A coisa animou e juntou gente. O tambor bateu com força e cantamos:

A vida de preto escravo

É um pendão de penar

Trabaiando todo dia

Sem noite pra descansar

Maria Preta iria reclamar até o fim. Em frente à pequena igreja da Lampadosa, escravas de ganho pararam para marcar o ritmo com a palma das mãos, na última homenagem a nossa amiga. A vida ficou mais triste.

Dias antes, me pediu que acendesse uma vela para Nossa Senhora da Boa Morte, assegurando uma passagem tranquila para o outro mundo. Conversamos um bocado sobre esses tais “santos” que vemos em todas as esquinas. Maria Preta disse que eram espíritos protetores com muita força, tanto que os brancos haviam nos vencido e escravizado. Mas que nós também podíamos buscar a sua ajuda. Recomendou que eu me colocasse sob a proteção de Nossa Senhora do Rosário, amiga de negros e negras. Perguntei:

— Nzambi não vai brigar?

— Que nada. Nzambi é bom, não é orgulhoso. Toda a ajuda, pra nós, é bem-vinda.

Não sei se ela estava certa, mas, no dia seguinte, fui à igreja da santa que gostava de negros. Estava lotada. Era vela queimando que nem uma fogueira. Havia gente de todas as nações. A rua estava cheia de grupos de escravos conversando. Até que vieram aqueles homens de azul. Montados a cavalo com a espada na mão e olhos pingando ódio. O mar de negros se espalhou em ondas para todos os lados. Para reaparecer uma meia hora depois. Nossa arma era a persistência. Eu me emocionei diante da estátua da santa. Ela tinha uns olhos bons, parecidos com os da minha mãe. Pedi para não morrer sem rever a minha terra, o meu Cuanza. E mais do que tudo, implorei para voltar a ver o meu amor.

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Nos dias muito bons, eu caminho pela Praia do Peixe, buscando um lugar mais silencioso. Ajeito um pano, deposito o cesto, sento na areia e fico olhando para a Calunga Grande, que eles chamam de mar, na direção da minha aldeia. Se eu vim de lá, para lá posso voltar. Sempre há bandos de gaivotas, mergulhando para buscar alimento. A liberdade para mim é que nem o céu. Um dia voarei para onde eu quiser.

Sonhei que viajava na canoa grande dos brancos. O vento soprava sem parar. O barco não tinha marinheiros, não tinha ninguém. O mar foi cruzado em um dia. Chegando no Cuanza, o vento parou. Mesmo assim, o barco subiu o rio, bem devagar, enquanto eu reconhecia a minha terra e chorava. O povo da aldeia estava me esperando onde eu e Kitusha tínhamos sido atacadas. À frente, Mukongo, braços fortes ao longo do corpo e mãos que logo me envolveram. Os tambores não pararam de tocar enquanto todos bebiam maluva para celebrar a minha volta. Abriu uma roda e a gente dançou a noite inteira. Agradeci aos deuses por ninguém perguntar o que tinha acontecido comigo. Os tambores devolviam a vida que os ahuki tinham me tirado.

Mukongo tinha me explicado a força do tambor. Ele é feito de árvore, sacrificada para virar madeira, o corpo do instrumento. De animal, que morre para se transformar no couro, pele do tambor. Por fim, existe a mão humana, fazendo com que a árvore e o animal fiquem vivos na forma de som. Por isso, o som do tambor abraça a gente com um calor tão gostoso. É também pela presença dos ancestrais, atraídos pela fogueira, pelo ritmo e pela festa. Mata-se um porco ou mais e não falta maluva para beber. A aldeia vira um só corpo.

Aqui também tem tambor, também tem festa. O deus deles criou o mundo em seis dias. Se até ele descansou no sétimo dia, nós também podemos parar de trabalhar. Se os senhores deixarem, já que alguns não respeitam o próprio deus. Domingo passado, Rosa e eu fomos até o descampado no fim da cidade onde todos os negros se reúnem. Não tem nada lá, afora bicas de água para a gente encher e carregar. Água de beber, de lavar roupa, de cozinhar e até de tomar banho, tudo vem nas costas dos negros. Aos domingos, cada um se encontra com os seus e cada povo canta suas canções e dança do seu jeito. É como se fossem várias festas que viram uma festa muito grande. Ou várias aldeias formando uma aldeia enorme.

Uma a uma as nações fazem seus círculos. Competindo entre si, procuram bater os tambores com mais força, balançar a cabaça com mais alarido, cantar mais alto,

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mostrar mais alegria ao dançar. Gritei minha dor e entrei na roda. O tambor tocava dentro de mim e fazia jorrar vida no corpo. Dancei sem pensar, de olhos fechados. Voltei a ser Olabisi, aquela que nada sabia de escravidão ou liberdade. Aquela que simplesmente era. Recuperei minha força, esvaziada todos os dias pelos ahuki. Remexi as cadeiras no calor do desejo. Soltei os braços e a cabeça, abrindo uma gaiola de pássaros. O Cuanza corria dentro de mim. Meus pés roçavam o chão como se pisassem o solo da aldeia. Nenhum branco é capaz de fazer isso. Já vi as danças deles, parecem bonecos de madeira.

No domingo, depois da morte de Maria Preta, ouvi uma canção que me deu conforto:

Bumba, bumba, ó calunga,

Tanto quebra cadeira como quebra sofá.

Bumba, bumba, ó calunga.

Os ahuki nunca vão entender. Calunga é a passagem entre esse mundo e o mundo dos mortos. Cadeira aparece porque na nossa terra um homem era usado como cadeira para o soberano, o soba, que vira sofá na canção. Em outras palavras: morrem os escravos. Mas os senhores brancos, que se acham tão poderosos, morrerão também.

Na nossa festa não tem um só branco. Afora os morcegos, esses guardas que estão espalhados por toda a parte, lembrando que fugir não vai ser fácil. Mas hoje ficam vendo de longe, devem ter medo da fogueira, dos feitiços ou mesmo da nossa alegria, da nossa vida. São morcegos porque ficam sempre escondidos em lugares escuros para nos surpreender. Vigiam principalmente os negros recém-chegados, que se revoltam mais. Ainda não se conformaram com o destino e têm ganas de sair nadando até a África. Os guardas só prendem negros. Às vezes não prendem, batem com um chicote de muitas pontas, o camarão. Dói muito. Não podem ver um grupo de negros e negras reunido que atacam. Surgem do nada e chegam batendo.

Quando eu era boçal a patroa me mandou buscar água. É um trabalho pesado. Não somente por carregar o barril. Você tem que esperar sua vez na fonte, no meio de uma multidão impaciente composta de muitos de negros e algumas negras. O trabalho de buscar água é mais de homem. Quando tem muito homem junto, branco ou

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negro, livre ou escravo, sempre dá confusão. Um acha que estava na frente do outro, ou alguém não gosta de uma brincadeira. Daqui a pouco sai briga, soco e pernada pra todo lado. Eu já estava um bom tempo na fila. Foi quando apareceram esses homens de calça branca e camisa azul. Falaram que iam organizar. Por não entender a língua, demorei a cumprir a ordem de um deles e tomei um tapa na cara. O que doeu mais foi a risada, o prazer que ele teve.

Os negros condenados por algum crime têm que realizar o trabalho mais pesado e sujo de todos. Carregar toda a merda da cidade em tonéis que vivem entornando em cima deles e causando doenças que mancham a sua pele. Por isso são chamados de tigres. Despejam tudo nas praias da cidade. Outros são acorrentados em conjunto. Carregam tonéis de água para abastecer os quartéis e outros lugares pertencentes aos brancos.

Os que fogem e são capturados passam a usar para sempre um colar de ferro que atrapalha sua movimentação e mostra sua condição de negro-fujão. São também marcados com a letra F. Mas antes disso eles são açoitados pelos morcegos, que recebem pagamento segundo o número de açoites aplicados. O proprietário ou proprietária pode escolher entre receber o escravo logo depois de ser castigado ou deixar os guardas cuidarem da sua recuperação por um tempo. Cobrando por cada dia de hospedagem, é claro. Carrascos alugados. Nosso ódio por eles é ainda maior do que o que sentimos dos nossos donos e donas. Não poderia ser diferente. Não entendo por que eles têm tanta raiva da gente. Será que eles têm raiva de outras coisas e despejam na gente? Será que acham que somos bichos? Cães perigosos a serem domesticados? Só sei que sentimos um arrepio de morte ao ver a farda azul.

No domingo havia sim, um branco. Um velho, olhando com muita curiosidade os tambores, os cantos e as danças. Ao lado dele estava um negro esquisito, magrelo, vestido feito branco e com sapatos nos pés. O velho tinha pedaços de garrafa na frente dos olhos, um caderno onde às vezes escrevia e desenhava. O que ele fazia ali?

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