/ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 16

ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 16

ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 16

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 16 – 1823– Debret

 

Aparecida estava à vontade. Talvez fizesse sucesso em Paris. É uma bela jovem, filha de um carpinteiro mulato e de mãe negra. Uma cabra, como dizem aqui. Tem olhos de um canário-da-terra, inquieto e sapeca. Veio enfeitada com um lindo colar. Os cabelos cacheados formam uma moldura perfeita para um rosto expressivo e harmônico. Foi Violeta que a convidou a posar. Sem a ajuda da minha amiga eu não teria conseguido. Um homem branco, velho, estrangeiro, pedindo a uma moça para ir até a sua casa para fins artísticos mediante o pagamento de uma pequena quantia? Pareceria mais uma transação do pujante mercado sexual da terra.

Violeta permanece no ateliê enquanto eu faço o primeiro esboço do busto de Aparecida. O entendimento entre elas foi imediato. Seu pai fora alforriado ao nascer por seu avô, dono de uma fazenda de café em Vassouras. O avô nunca o reconheceu como filho e cedo o mandou para o Rio de Janeiro ser aprendiz de carpinteiro, com a ordem de nunca voltar. O dono da oficina, um português exigente e violento, mandava trazer o almoço de uma taverna próxima para não perder tempo. A escrava que levava as refeições era uma menina de doze anos, a mesma idade do pai de Aparecida. Este sabia ler e escrever, pelo menos o suficiente para rabiscar bilhetes que passava secretamente para ela. A mãe era amiga de uma sinhazinha que lia os bilhetes. O pai de Aparecida prometeu que compraria a alforria de sua mãe. Artesão habilidoso, logo teve sua própria oficina. Juntou a quantia necessária para libertar o seu amor. Ambos tinham quinze anos. E cá estava Aparecida, fruto de um amor digno e persistente. Amores já são muito complicados, imaginem com a necessidade de uma carta de alforria.

A modelo seguinte representava um outro tipo de amor. Era uma mulata vigorosa e abastada de carnes, concubina ‘teúda e manteúda’ como se diz por aqui. Clara não tinha vergonha da sua condição, pelo contrário. A importância do homem que a mantinha não se traduzia somente em belos vestidos e jóias, mas também em um ar de superioridade diante de outras mulheres do povo. A hierarquia é tudo nesta terra e ela sabia disso. Também entendia o quanto aquela situação era provisória: – 117 –

— Estou fazendo meu pé-de-meia. já comprei três escravas ao ganho e ai delas que não me venham trazer a diária direitinho.

Aqui foi o inverso do ocorrido com Aparecida. A antipatia entre Violeta e Clara foi imediata e bem forte. Felizmente a terceira e última retratada do dia apagou a má impressão que havia ficado em Violeta. Maria do Céu era uma negra angola, que havia conquistado sua liberdade graças a uma mão inigualável para a cozinha. Ainda hoje vivia de vender angu no Mercado do Peixe. Escravos e escravas de ganho, faziam fila diante da sua barraca, esfomeados, querendo comida boa, bem temperada, com pimenta no ponto. E aquela generosa simpatia de Maria do Céu. Porque ela emanava coragem, a firme determinação de encarar a vida dia após dia. Ao contrário das duas outras, não era bonita e pouco se importava com isso. Usava apenas um lenço na cabeça e nenhuma jóia. E as tatuagens que tinha no rosto não a embelezavam de forma alguma. Ao se despedir nos fez prometer que um dia iríamos até sua quitanda provar o angu. Temo que Violeta me obrigue a cumprir a promessa.

Nos dias seguintes, fiz mais retratos, que pretendo colocar no meu livro em um quadro comparativo. Esbocei o retrato de uma elegante criada de quarto rebolo, que imitou o penteado de sua senhora da melhor forma possível. De uma cabinda, criada de quarto, vestida em trajes de gala para levar uma criança ao batismo. De uma calava vendedora de legumes, tatuada com terra amarela e cabelos enfeitados com contas e pingentes. E muitas mais, até perfazer dezesseis tipos de mulheres negras ou mestiças, livres ou escravas. Algumas nada falaram, vieram ali como uma das suas muitas tarefas, felizes em embolsar o pagamento. Outras, ao se perceberem no centro do palco, alvo de uma atenção real, puseram a alma para fora e compartilharam suas vidas conosco. Novamente, foi minha amiga que soube criar um ambiente generoso e acolhedor para mulheres tão castigadas pelo destino. Era o jeito de beija-flor com que seus olhos pousavam nelas.

Ouvimos a história de Glória com o coração suspenso. É uma escrava mina, deve ter no máximo dezesseis anos. Seu dono é um comerciante escocês de grosso trato, homem de grande fortuna e bons contatos na Corte, uma coisa fortalecendo a outra. Seu patrão tem um verdadeiro harém com sete escravas – uma para cada dia da semana, gosta de dizer -, mas já estava providenciando mais uma “para ter de reserva”. – 118 –

Depois de terminar sua refeição noturna, ele fuma seu charuto, lê os jornais que manda trazer do estrangeiro e ordena a seu escravo de confiança que vá buscar esta ou aquela escrava para deitar-se com ele. Glória, desgraçadamente, era a preferida. Contou, baixando a voz com medo de que ele a ouvisse, que o tal homem só tem prazer castigando. Vi que os olhos de Violeta estavam orvalhados de lágrimas enquanto Glória descrevia, em detalhes, os horrores a que ela e suas companheiras eram submetidas. Direi apenas que envolviam cordas, mordaças e um chicote brandido com muita força. Além de dor, humilhação e um trauma que demoraria cinco vidas para passar.

Aquelas três semanas haviam sido uma espécie de mergulho no Brasil e na sua instituição central: a escravidão. Quem a analisa de longe, adotando uma perspectiva religiosa, filosófica ou econômica, não tem a menor ideia do que seja de perto em termos humanos. Até Violeta, que já conhecia tudo aquilo desde que nasceu, ficou extremamente abalada. As mulheres que vemos nas ruas têm nomes, histórias, sonhos, esperanças. Diante disso, nos sentimos impotentes. Fiquei triste em perceber que havia feito Violeta sofrer, mas ela rebateu a ideia:

— Jean-Baptiste, estão lutando do jeito que podem por suas vidas. Há beleza e esperança.

Tive que concordar, mas não consegui sair de um estado de desânimo, afinal eu era o pintor de História deste país que tanto maltratava as mãos que construíam a nova nação. Desenhei a primeira bandeira da pátria brasileira, com o verde dos Bragança e o amarelo dos Habsburgo. O que ninguém reparou é que o losango no centro do retângulo era uma homenagem às legiões de Napoleão, que praticamente conquistaram o mundo empunhando um pendão com esse formato. Havia conseguido inserir um pedacinho de revolução francesa no pavilhão de um país absolutista, uma ironia histórica de primeira. E já recebera a encomenda para pintar um quadro monumental da coroação de Dom Pedro I, para o qual eu precisaria de ajudantes.

Fui resgatado da tristeza por mais uma conspiração de Violeta e Sebastião. Há dois dias já que eu os via cochichando e rindo, combinando detalhes. Quando estavam assim eram dois coelhos nervosos, nem adiantava perguntar. Um dia, depois do jantar, Julieta me avisou para dormir cedo e descansar bastante, – 119 –

pois sairíamos ainda de madrugada. Quando era assim ela dormia lá em casa e pedi a Sebastião que preparasse o quarto de hóspedes, o que ele já havia feito.

O sol ainda devia estar se espreguiçando no meio da noite. Fomos em direção à cidade. Atravessamos toda a balbúrdia da Rua Direita, àquela hora já apinhada de negros e negras iniciando seus trabalhos. Pegamos o Caminho Velho e em seguida o caminho de Botafogo. Passamos a linda baía bem no momento em que amanhecia e vimos o Pão de Açúcar ficar dourado. Entramos numa região de chácaras esparsas e muita beleza. Mais e mais pássaros, eram donos do céu. Fomos pelo Caminho de São Clemente até chegar à linda praia de Peaçaba, à beira da maior lagoa da cidade, um sítio de beleza ímpar. Cheguei a sentir inveja de Taunay, tenho que admitir que ele sabe pintar uma paisagem como ninguém. Era uma calma tão grande que senti até vontade de nadar. Fui fortemente dissuadido por Sebastião, com medo de que o patrão fosse devorado por jacarés.

Em seguida pegamos o Caminho da Gávea. Continuamos por um bom tempo. Pensava que íamos no Real Horto Botânico, mas não era este o nosso destino. Sebastião anunciou:

— Patrão, patroa… quer dizer, Dona Violeta, temos que descer e caminhar.

Nunca fui afeito a exercícios físicos. Mas a minha curiosidade era tão grande que aceitei sem reclamar. Violeta, ao contrário, estava à vontade na natureza. Observava cada árvore, acariciava as folhas examinando-as de perto e, sobretudo, tinha mil olhos para os pássaros. Conhecia o nome de cada uma das espécies mais comuns na região da Corte e arredores. Quando estava em dúvida, recorria a Sebastião, capaz de fornecer o nome em latim:

Conirostrum speciosum, senhora.

Que vinha a ser o pequenino figuinha-de-rabo-castanho, todo azulado com exceção do rabo, como o nome diz.

Meus conhecimentos de História Natural eram escassos. Mas duas coisas sempre me impressionavam. A enorme diversidade de espécies vegetais e animais, era um mundo próprio. E a música da mata, a melodia formada por todos os sons: o canto dos pássaros, o vento nas folhas, o galho que cai, o som distante de – 120 –

um animal, os macacos passeando pelas árvores, as cigarras. Isso me encanta. Fui trazido dos meus pensamentos por Sebastião:

— Chegamos, é logo ali.

Foi bom ele ter avisado. Porque não era fácil de ver. Era uma casa, ou algo parecido. De pau-a-pique. Havia sido erguida, talvez fosse melhor dizer encaixada, em parte da raiz de um jequitibá gigantesco, que formava um V ao contrário, com as raízes servindo de paredes laterais. A frente, com exceção da porta bem baixa e da pequena janela, era toda coberta de plantas, como se fosse parte da floresta. Mimetizava a paisagem como fazem certas espécies que adquirem a cor do tronco ou folha em que estão pousados. Uma defesa contra predadores. Contra que predadores? Só podia estar se protegendo contra o bicho mais perigoso de todos: o homem branco.

Não foi preciso bater palmas ou chamar. Em meio minuto ele apareceu. Era um negro velho, alto e muito magro, apoiando-se em um cajado de uma madeira escura. Seus pés tocavam a terra como se fossem de barro. Andava com dificuldade mas com elegância. Contente por estar vivo. Não nos saudou com palavras e sim com um rosto inteiro desabrochado em alegria. A felicidade que a nossa presença proporcionava era desfraldada como uma bandeira ao vento. Fiquei pensando se seria capaz de pintar aquela sabedoria contente. Se o desenho for bem feito, os traços do rosto equivalem a uma biografia.

Sebastião rompeu aquele delicioso silêncio, com o gesto respeitoso de ajoelhar-se e beijar a mão do homem. Em seguida, levantou-se e nos apresentou:

— Pai Alberto, também conhecido como o Balongo da Lagoa. Meu pai, esses são os amigos de que lhe falei: Dona Violeta Tavares e o senhor Jean-Baptiste Debret.

— Os amigos de Tiãzinho são tudo bem-vindo aqui em casa.

Depois de pedir licença, Sebastião explicou quem era Pai Alberto.

— Pai Alberto é o Balongo mais respeitado da cidade. É uma palavra que os brancos costumam traduzir como feiticeiro. Mas Pai Alberto não costuma receitar poções, ervas, unguentos, muito menos ventosas.

Então, o que ele faz ? — perguntei.

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— Eu vejo a vida pra trás e pra frente — respondeu o velho sem se alterar.

Percebi Violeta tomada pelo medo. Não consegui imaginar o motivo. Mantive uma atitude respeitosa, mas não acreditava de fato nos poderes divinatórios de Pai Alberto. A não ser que ele fosse um aedo homérico perdido em terras tropicais, pois na Ilíada e na Odisséia os poetas, inspirados pelas musas, são capazes de cantar o que aconteceu e de predizer o futuro. Mas gostei daquele homem. Era uma árvore sem folhas ou flores, só tronco e raiz.

Segurei a mão de Julieta. Ela olhou para mim com a gratidão de um animal assustado. Espero que não tenha percebido o arrepio que percorreu o meu corpo de cima abaixo. Nem tampouco o sorriso que queria nascer em minha boca. Sebastião nos salvou daquele duplo embaraço:

— Bem, se algum de vocês quiser conversar com Pai Alberto, não podemos demorar muito … ainda temos uma longa viagem de volta.

Disse que gostaria. Mais para evitar que Violeta ficasse em uma posição difícil. O negro velho sorriu entendendo tudo. Ultrapassamos tiras de palha que pendiam na vertical servindo de porta e entramos na casa. Se aquele era um homem poderoso, aquilo não se refletia em termos materiais. Uma esteira castigada a um canto era decerto onde dormia e sonhava. Havia dois bancos de madeira, apontou um pedindo que eu me sentasse.

— Sinhô não acredita em Balongo, não é mesmo?

— Diria que estou curioso.

— O sinhô é educado, um branco de bom coração. Já sofreu muito não foi?

Não posso dizer que não.

— Não precisa acreditar em Pai Alberto não, mas vamos ver o que a água diz.

— A água?

Sem dizer mais nada, tomou uma bacia de lata bem gasta, amassada, feito as usadas pelos barbeiros ambulantes. Estava com água até a borda. Concentrado, mirou com atenção o pequeno espelho d’água. Passado e futuro? Em um gesto – 122 –

lento, jogou a primeira pedra com sua mão direita e ficou observando os círculos desenhados na água até eles sumirem.

— Menino morreu na guerra, longe de vocês, muita dor. E mulher de cabelo de fogo se desesperou e foi embora, sinhô gostava muito dela, não é?

— Como é que o senhor sabe disso?

Não sei de nada. Homem não é nada, os deuses é que dizem.

Sou um racionalista, um homem das Luzes. Observo a religião com uma pontinha de desprezo. Para mim é apenas um conjunto de superstições bem elaboradas e organizadas, muitas vezes para enganar o povo e mantê-lo na ignorância quanto às verdadeiras causas do seu infortúnio. Mas não havia como aquele homem saber da morte de Honoré e do meu abandono por Claire. Não havia contado a ninguém no Brasil, Sebastião não tinha a menor ideia. Eu só mencionava a perseguição política feita aos pintores do círculo de Napoleão. Era o suficiente para que todos acreditassem em mim. E agora, depois de jogar uma pedrinha numa bacia amassada cheia d’água, esse homem falava do meu passado como se o conhecesse tão bem quanto eu.

Aquilo era só o começo. Agora ele olhava bem nos meus olhos, sem sinal de vingança, na verdade cheio de compaixão. Perguntou:

— Sinhô quer que eu olhe o futuro também?

Engoli em seco e mal consegui fazer com a cabeça que sim. Ele jogou a segunda pedra, agora com a mão esquerda.

— Sinhô vai terminar o escrito grande que tá fazendo, do jeito que o sinhô quer. Vai voltar pra terra onde faz muito frio e tem chuva branca. Mas não vai mais encontrar mulher de cabelo de fogo. – 122 –

— Eu sabia. Fico feliz com o livro, é a obra da minha vida.

— Sinhô vai conseguir tudo que queria com ele, menos dinheiro.

— Isso é mau. Mas o senhor tem algo a me dizer além disso?

— Tenho sim, mas o sinhô tem certeza de que quer ouvir?

Saí de lá feito um pássaro de asas quebradas. Violeta notou. Em um movimento inesperado, se aproximou e me deu um abraço. Meu coração era um cavalo selvagem em um prado aberto. Senti o perfume da pele que era o jardim das delícias. Tive o desejo infantil de que ali ficássemos, dia e noite, ao sol e à chuva, até que nossos corpos se entrelaçassem como as raízes de duas árvores, passando a viver na mesma terra, bebendo da mesma chuva.

Ela se afastou um pouco para poder me olhar.

— Você está bem, Jean-Baptiste?

Não pude responder, mostrei meus olhos.

Os dela se encheram de carinho. Pousou as mãos nos meus cabelos grisalhos. Encostou nos meus lábios a sua boca de sonho. Nunca mais fui o mesmo. A minha vida era feita de outras cores.

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