/ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 8

ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 8

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 8 – 1819 – Debret

 

A situação dos artistas franceses balança mais do que o Calpe na travessia do Atlântico. Morreu Lebreton, o mentor da nossa aventura. Ele fez os contatos necessários para que pudéssemos escapar de Paris, onde nosso destino prometia ser sombrio. Na sua falta, somos um exército sem comandante, um corpo sem cabeça. Taunay quer disputar comigo a direção da Real Escola. Apoia-se no seu prestígio na França. Aqui não vale tanto quanto os relacionamentos pessoais.

Vou a São Cristóvão para tratar das minhas tarefas como pintor de História. Sempre encontro Dom Pedro, cada vez mais exasperado com a prisão que lhe impõe o casamento. É um pai amoroso e tem carinho pela esposa. Dona Leopoldina é uma mulher erudita, de gostos finos e gestos delicados. Infelizmente, não possui os dotes de beleza que o marido tanto aprecia. Em sendo a corte, como toda corte, um viveiro de fofocas, o jovem herdeiro acabou me tomando como confidente.

Ouço longos relatos sobre cavalos e caçadas e fico sabendo das escapadas do jovem Pedro. Disfarçado, ele percorre as piores tavernas da cidade na companhia de amigos. Fico imaginando se no caminho topam com capoeiras armados de porretes e navalhas. Se houvesse liberdade de imprensa a manchete seria: “Malta de capoeiras leva tudo do príncipe regente em frente a estabelecimento de má fama”. De nada adiantaria aconselhá-lo a evitar essas perigosas excursões. Ele é daqueles que atravessam o oceano atrás de um rabo de saia. Da última vez que nos vimos deu-me de presente uma cadeira feita com as próprias mãos. Esta alma curiosa gosta de se divertir praticando a carpintaria.

É bom não brincar com os capoeiras. Outro dia eu e Sebastião estávamos perto da Igreja de Santa Rita. No pequeno largo, vimos dois grupos de negros frente à frente. Uns levavam fitas amarelas nos chapéus, gorros, cartolas e no que mais usavam como cobertura. Os outros faziam o mesmo, só que as fitas eram vermelhas. Haviam enfeitado com suas cores o mastro existente no local, demarcando o território. Amarelos e vermelhos balançavam o corpo e os braços, jogando um pé de cada vez para trás, numa óbvia preparação para o ataque. Os encarnados, que eram ao menos o dobro dos seus inimigos, cantavam assim:

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Quem quer ver a cutia assoviar?

Sebastião explicou. Era um desafio. Se a malta adversária tentasse invadir o Largo de Santa Rita, teria que enfrentar a ferocidade da turma da fita vermelha. A situação se resolveu de outra maneira. Em gritante inferioridade numérica, os amarelos recuaram, debaixo uma chuva de pedras e garrafas. Fugiram ao som de palavrões em português e em uma babel de línguas africanas.

Depois de três anos nessa terra, tomei uma decisão. Vou escrever um livro sobre o nascimento da nova nação. Creio que será de interesse para os leitores franceses e europeus em geral. Decidi retratar em aquarelas o cotidiano da Corte, sobretudo os usos e costumes dos negros. Eles são o povo. Os que dão vida à cidade, movimentam as ruas. Os que criam a riqueza do país. São eles que criam uma fisionomia original para o Brasil. Isto aqui não é Europa nem África, mas uma alucinante mistura das duas. Nasce nestes trópicos uma cultura ímpar, que vou procurar conhecer e descrever com gravuras e textos. Mas o livro só existirá quando eu voltar a Paris. Por enquanto irei apenas acumulando um tesouro de cenas e observações. A sociedade branca não verá com alegria o quadro que traçarei da sua preguiça, do seu parasitismo, da sua violência e crueldade. Ficarão indignados diante do destaque que os negros terão na minha obra.

Nem tudo entrará no livro. Vou deixar de fora muitos esboços que fiz de negros e negras abandonados à própria sorte nas ruas. Uns por velhice, outros entregues ao vício da bebida e outros sem desejo de viver. Me impressionou a capacidade de reconstruir o sentido da existência por parte destes seres que foram arrancados de suas vidas, de sua terra, de sua família, dos seus amores. Quero enfatizar a capacidade de resistir. A habilidade para usar os elementos à disposição, por mais pobres que sejam, para retomar a vida em bases distintas. São capazes de recriar seu mundo e seus valores fazendo uma roda, cantando e batendo palmas. Em cada esquina, as quitandeiras fabricam as comidas de África e mesmo as cozinheiras que trabalham para os brancos fazem as comidas européias a seu jeito, aos poucos modificando o gosto dos patrões. Os gregos vencidos, derrotados pelos romanos na espada, venceram pela força da sua cultura. Até na forma de falar os negros vencem os brancos. A língua falada no Brasil não é o português duro e ríspido que sai da

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boca dos lusitanos. A palavra “senhor”, talhada em pedra, é derretida em bocas africanas para se tornar doce, até malemolente: “Sinhô”. Senhora desce do pedestal e torna-se sinhá, para depois, sensual e despida de consoantes, virar iaiá.

Isso também ocorre comigo. A lembrança de Honoré está sempre presente. Claire dói no meu corpo e a cada dia seus cabelos estão mais vermelhos nos meus sonhos. Mas estou aprendendo a reviver. Adoro ver os bandos de maracanãs fazendo sua alegre bagunça logo de manhã. O onipresente bem-te-vi e sua conversa de sempre. O assustador tucano, majestoso ao voar. E muitos outros: o martim-pescador, o canário da terra, o bico-de-lacre, a cambaxirra, o beija-flor. Todo fim de tarde eu procuro uma árvore frondosa para ouvi-los, apreciar suas cores e formas.

Há também as frutas de gosto inigualável. Só pode gostar de maçã quem nunca provou uma manga a desmanchar na boca. O que dizer da banana, que esta terra produz com tanta facilidade? Comida no momento certo, pode ser uma fruta bem saborosa e duas ou três valem um almoço. O perfumado abacaxi. O côco, refrescante e saudável. O caju, que além do sabor agradável dizem ser um bom remédio contra a sífilis, doença que tanto assola estas plagas. O maracujá, para doces. E o mamão, o cajá, a melancia, a pitanga, a goiaba, o jambo, a jabuticaba. Sem falar na estrela da companhia, a laranja, que salva os escravos da fome.

Gosto da calma do Catumbi, regime ideal para um artista. No entardecer da existência sinto-me revigorado pela tarefa que me propus. Quis o destino que eu me tornasse o pintor deste novo país. Apesar dos seus muitos defeitos, ele está em movimento e poderá um dia vir a fazer parte das nações civilizadas. Meu nome será lembrado como o primeiro a perceber e a retratar o início dessa trajetória.

Às vezes, sou capaz de perceber lado a lado as forças do atraso e do progresso. Buscava alguém para cortar meu cabelo. Sebastião sugeriu a loja de dois conhecidos na rua dos barbeiros, uma pequena viela perpendicular à rua Direita. Fui recebido com simpatia por Manuel e Francisco. São dois negros forros, que compraram a liberdade graças a seu trabalho. Atendem à clientela impecavelmente vestidos. Meu cabelo foi tão bem cortado quanto o seria nos melhores cabeleireiros de Paris. São homens de mil talentos. Além de empunharem a tesoura, fazem sangrias, aplicam sanguessugas e são capazes de costurar meias de seda com facilidade. Arrancam dentes, se for o caso. Executam valsas e contradanças francesas no violão ou na clarineta. Vestidas

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de um ritmo africano que as torna mais quentes. Vira e mexe são contratados para fazer parte de uma banda de músicos negros. Tocam em frente de uma igreja para chamar os fiéis. São cidadãos honestos que merecem este título mais do que ninguém.

Nem todos os cidadãos do país são assim. A poucos metros dali, na rua Direita, vimos um outro tipo de cena. À janela de sua casa, um dos braços negligentemente escorado no parapeito. Tinha um leque chinês em uma das mãos. O homem branco desfrutava o ar fresco da tarde. Tinha acordado depois de uma longa sesta. Chama uma vendedora de doces, uma jovem negra bem ataviada. Desinteressado da mercadoria, quer saber da vida dos patrões da escrava. Como a negra nada lhe revela de mais picante, despacha-a com uma frase grosseira:

Vai-te embora!

Quando da feitura do livro, penso em colocar as duas cenas lado a lado para que o contraste fique mais acentuado.

Na tarde de um domingo vi uma cena ainda mais grotesca. Nos domingos pela manhã Sebastião e eu costumávamos ir assistir missa em algumas das igrejas da cidade. Confesso que não se tratava de assunto de religião. Já havia feito as observações que me interessavam sobre o tema. Eu acordava cedo no dia reservado ao descanso para ter uma oportunidade de ver as mulheres da sociedade local. Estas só saem de casa para cerimônias religiosas, se aí incluirmos o casamento e os funerais. A elegância é um item quase tão raro quanto a neve. Elas vestem-se de forma rebuscada, com cores incompatíveis com o local. As casadas são matronas disformes. Mas consigo perceber alguns sinais de beleza em jovens solteiras. A diferença de idade impede qualquer pretensão da minha parte, mas respirar o mesmo ar que elas ainda me é necessário. Curiosamente, não há assentos e elas sentam-se no chão como se estivessem numa mesquita.

À saída, Sebastião chamou a minha atenção para uma estranha comitiva. Encabeçando o cortejo familiar, vinha um alto funcionário com o pomposo chapéu que indica sua posição social. Os botões do colete estavam prestes a saltar por conta da pressão que neles exercia um abdômen volumoso projetando-se à frente. O homem, pouco maior do que um anão, era uma melancia com braços, pernas e

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cabeça. Calçava altas botas de couro, aqui sempre associadas ao domínio e à violência dos senhores da terra. Portava uma espada permitida por seu status, carregada na mão direita. Estava posta sobre o ombro e voltada para os que o seguiam, como se os ameaçasse.

Atrás dele iam uma menina e um menino. Ela, com um vestidinho rendado e um penteado elaborado. Devia ter uns dez anos. O menino, uns doze ou treze. Tirando a espada, vestia-se como se fosse o pai em miniatura. Depois, vinha a senhora sua mãe, ainda mais volumosa que o marido, impressão aumentada pelo vestido de rendas e pelo véu. Por piedade, poupá-la-ei de considerações estéticas. Em seguida, a habitual mucama mulata. Embora trajando um vestido mais simples, era formosa. Depois tínhamos duas escravas vestidas como negras de ganho. A primeira era mais baixa, roliça, com um ar maroto cheio de promessas.

Que surpresa ao perceber que a segunda era aquela bela moça que vi dançando no Campo de Sant’anna no ano passado. Ficava a cada dia mais bonita. Estava claramente emburrada. Mesmo assim os seus olhos eram um rio caudaloso. Ela desprezava com toda a força sua participação. Afinal, aquilo era um desfile de riqueza e poder. Como o pater familias romano, que tinha poderes de vida ou morte sobre mulher, filhos e escravos, o homem-melancia estava apresentando o que lhe pertencia. E ainda era dono de mais três mercadorias. Um escravo, talvez com catorze anos, terminando sua fase de aprendizagem. E um garoto recém-comprado, mal-vestido e com aparência raquítica. À porta da casa, uma negra que devia ser a cozinheira, poupada daquele horror por ter que preparar o almoço.

Quão longe estávamos de Paris, onde pares de moças ou casais passeiam de braços dados, a conversar e a observar o que vai em torno pelas ruas, fazendo pausa para tomar café ou apreciar uma vitrine. Não merece o nome de passeio esta afirmação brutal do poder do senhor sobre almas e corpos à sua disposição. Mas é uma consequência lógica de uma sociedade em que mesmo famílias pobres têm ao um escravo ou escrava para daí tirar o sustento.

Por falar nisso, depois de ver as minhas finanças melhorarem, realizei um sonho: comprei a alforria de Dona Esmeralda. No dia em que lhe entreguei um papel que é incapaz de ler, tive que me conter diante do choro da mulher. Maldita a sociedade em que a liberdade pode ser comprada ou vendida. De início, as

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lágrimas correram grossas. Em seguida ela começou a soluçar alto e não pude evitar que me abraçasse. Sebastião estava satisfeito. O fato é que agora só existem pessoas livres na casa do Catumbi. Ao menos na República Debret a escravidão não existe.

Posso estar enganado, mas agora as refeições que ela prepara ficam mais gostosas. Gosto de pensar que é o sabor da liberdade. E o diálogo mais simples reveste-se de uma dignidade antes inexistente:

A sopa estava excelente, Dona Esmeralda.

Obrigado, sinhô Debret, se estiver faltando alguma coisa é só falar.

Estava tudo ótimo.

Ao contrário dos que são donos de seres humanos, durmo tranquilo com a minha consciência, sem medo de ser assassinado durante o sono. Depois da revolta de São Domingos, os brancos perceberam que poderiam provar do seu próprio veneno. A violência do cativeiro pode estourar em uma rebelião escrava incontrolável. No Brasil esta lembrança havia se tornado um fantasma para os senhores de escravos.

Sebastião e eu temos trabalhado duro percorrendo a cidade de alto a baixo, conversando com as pessoas, procurando entender os usos do povo e das camadas altas. Tudo tendo em vista o livro que pretendo escrever no futuro. Mas também é necessário buscar alguma diversão. Foi por conta disso que me permiti assistir a uma tourada ou quase. Montaram um circo de madeira neste enorme largo que é o Campo de Sant’anna. Onde eu já havia visto a festa dos negros. Desta vez era dia de festa de brancos.

O touro escolhido não colaborou. O animal não estava com vontade de atacar e muito menos de ferir quem quer que fosse. Tentaram estimulá-lo e até obrigá-lo, mas as intenções pacíficas do chifrudo eram incontestáveis. Fúria real, na verdade, tomou conta do público, que passou a vaiar, assoviar e arremessar cascas de laranja. Sebastião, que conhece essa gente há mais tempo, pedia que seu patrão não ficasse a rir. Os que estavam em torno poderiam interpretar meu comportamento como deboche com um mau resultado para nós.

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Não há muitas diversões para mim. Às vezes consigo comprar vinho francês de qualidade, que gosto de beber na paz da minha casa. Depois que a disputa com Taunay se acentuou, meus contatos com outros artistas franceses ficaram ainda mais escassos. Já comentei acerca da ópera, onde às vezes vou. As peças de teatro não valem a ida ao Rossio. Atores e atrizes são despreparados e as peças visam mais a gargalhada – tão a gosto do seu público -, do que a inteligência.

Em uma das minhas muitas idas ao palácio de São Cristóvão, conheci Sigismund Neukomm. É um grande organista e compositor austríaco que se tornou músico da corte portuguesa no Brasil. Estava ali na qualidade de professor de Dom Pedro e Dona Leopoldina. É um homem culto e com uma formação impecável. Estudou com Haydn, que pouco antes havia sido mestre de Beethoven. Tivemos uma conversa agradabilíssima. Ele também tem muito interesse nessa cultura que está nascendo aqui. Falou-me com entusiasmo do lundu, o primeiro resultado do contato dos africanos com a música européia, gerando algo inédito. Contou-me que acabara de compor uma peça intitulada Amor brasileiro, inspirada em um lundu. Quando a tocou ao piano fiquei encantado com a leveza e vigor. Pedi que repetisse a execução. Em troca, contei-lhe da minha ida ao Campo de Sant’Anna para ver os negros e suas danças. Ficou fascinado e me fez prometer que eu e Sebastião o levaríamos lá um dia. Creio que desejará ter mil olhos para dar conta de tudo que verá. Convidei-o para ir ao Catumbi e ele aceitou.

Fiquei contente. É difícil encontrar uma alma cultivada com quem se possa manter uma conversa civilizada. O que mais me alegrou foi o fato de que Neukomm vê o Brasil da mesma forma que eu. Sobretudo no que diz respeito a esta cultura que nasce da chegada contínua de africanos e da sua necessidade de adaptação. Os gregos já diziam que a necessidade é a mãe da invenção. Estes negros e negras, submetidos a uma condição desumana, são obrigados a reinventar a própria existência. Acabam por criar um mundo novo.

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