/CHALHOUB – Machado estuda as tensões internas à classe dominante depois da abertura do testamento do conselheiro Vale

CHALHOUB – Machado estuda as tensões internas à classe dominante depois da abertura do testamento do conselheiro Vale

“No céu azul e límpido armou-se logo a tempestade, e Machado, em seguida, e ainda sem abandonar por uma linha sequer o ponto de vista estritamente senhorial, estuda as tensões internas à classe dominante. Aquilo não podia ser, revoltava-se d. Úrsula, irmã do falecido, tia do guapo donzel das matemáticas. Se o reconhecimento de Helena já era por si só ‘um ato de usurpação e um péssimo exemplo (H, cap. II), a boa senhora parecia especialmente irritada com o fato do defunto procurar impingir-lhe a menina ‘no seio da família e de seus castos afetos’ (H, cap. II). Que o finado perfilhasse a menina, vá lá, são as tais ‘licenças jurídicas’, mas governar-lhe os sentimentos em situação tão melindrosa é que não havia de ser. Na realidade, toda a arenga de d. Úrsula sobre a severidade dos costumes e a pureza de seus sentimentos acaba se amoldando à forma de um preconceito de classe: nada se sabia sobre a origem dessa menina, nada constava sobre a mãe, além do nome. Como fazer ascender assim uma ‘mulher de ordem inferior’? Aquilo fora um excesso, argumentava por seu turno o dr. Camargo, médico e amigo da família. Esse dr. Camargo tinha um sonho, que consistia em casar sua filha Eugênia, ‘a flor dos seus olhos’ (H, cap. I), com o herdeiro do Andaraí; por conseguinte, o dito esculápio interpretou a perfilhação de Helena como uma subtração indevida aos bens que, no futuro, seriam de Eugênia. Fora definitivamente um excesso, ‘à custa de dinheiros alheios’ (H, cap. II). Machado é impiedoso quanto aos motivos do dr. Camago, chega a compará-lo a um ‘réptil’ (H, cap. VII), e se delicia em descrever a frívola Eugênia como ‘uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do céu ‘fluminense’ (grifo meu, H, cap. V).”
Sidney Chalhoub. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 21