/Diário do Urucuia 030 – O doutor aparece em dobro, Diadorim e Joca Ramiro, o catrumano; Faixa bônus: Segunda e última parte da entrevista com Monique Figueiredo Barboza, da Central Veredas

Diário do Urucuia 030 – O doutor aparece em dobro, Diadorim e Joca Ramiro, o catrumano; Faixa bônus: Segunda e última parte da entrevista com Monique Figueiredo Barboza, da Central Veredas

Diário do Urucuia 030 – O doutor aparece em dobro, Diadorim e Joca Ramiro, o catrumano; Faixa bônus: Segunda e última parte da entrevista com Monique Figueiredo Barboza, da Central Veredas

Minha querida madrinha rosiana Regina Pereira comentou comigo que eu estava encontrando todos os personagens do livro aqui em Urucuia. Inclusive, como conversamos, um seô Habãozinho sovina-mor que vocês sabem muito bem quem é. Riobaldo e Diadorim apareceram em grande estilo, por exemplo. Mas estava faltando o doutor. Claro que eu seria um candidato ao posto, mas prefiro declinar. Meus alunos me chamam de Zé Bebelo, menos pela coragem, que não há, do que pela furiosa vontade de viver e aprender e pelas bizarrices. Mas e o doutor, quem seria? Aguardei com paciência rosiana.

Hoje aconteceu o milagre: tivemos café da manhã. Mikaele estava de tão bom humor que fez até suco de maracujá, o meu preferido. E recebi a resposta à pergunta: o doutor, quem será, quando vai aparecer? O doutor se multiplicou por dois na pessoa de um paranaense e uma norte-americana, um casal de geólogos que veio estudar as formações rochosas de Santa Fé de Minas até Urucuia. Passam o dia nas ravinas quebrando pedra, para depois escreverem suas teses de doutorado, outra pedreira. Passei a eles as dicas da Vereda da Mutuca e do rio Urucuia. Depois os vi saírem com suas pesadas mochilas com instrumentos de trabalho. Fazem a coleta nas ravinas, ou seja, nos barrancos. Já tinham estado aqui em janeiro, em um calor terrível, mas agora, eles que vivem bem no norte dos Estados Unidos estão achando até graça no frio urucuiano de 16 graus. Antes, ainda no desjejum, quando perguntado sobre o que estava fazendo, aproveitei para pregar o evangelho rosiano, explicando minimamente acerca do narrador e suas questões existenciais e metafísicas. Não contei o segredo de Diadorim…

E por falar em Diadorim, já contei aqui que o pai dele, seu Delvan, trabalha na construção da pastelaria de seô Habãozinho. Eu havia encontrado com ele e prometido entregar uma pasta (azul) com todos os materiais didáticos de apoio para ler Grande sertão: veredas. Dias antes eu tinha observado seu Delvan “descascando” o cimento como preparação à colocação de um rodapé de azulejo. Contei isso a ele e argumentei que era preciso força suficiente para não deixar uma saliência mas não um excesso que produzisse um buraco. Ele concordou e eu disse que isso ele só conseguira depois de muita prática: — Com a leitura é o mesmo, seu Delvan, o seu filho tem que praticar muito até a coisa fluir. A leitura é essencial se ele quiser fazer uma faculdade. E esse livro é um ótimo exercício. — O senhor deu o livro a ele, não deu? Porque eu vi ele lendo esse livro umas duas ou três vezes. Eu me emociono pensando nisso, pensando no livro do Rosinha como uma semente de cidadania, como uma porta que se abre para um universo de beleza, mas também como o caminho do Diadorim para uma vida melhor. E os olhos do seu Delvan, esse homem tão trabalhador, são bons, bons… debaixo da roupa toda empoeirada de pedreiro, há um Joca Ramiro: “grande homem príncipe”.

Começaram as despedidas. Contra minha inclinação natural, começo a tirar foto com todo mundo: começo com Mikaele, que prepara o café da manhã (quando Habãozinho deixa), arruma os quartos, enfim, sozinha dá conta de todo o trabalho no hotel com tanta tranquilidade que a gente até esquece que ela está fazendo força. Depois, vieram as moças que trabalham no restaurante a peso do posto de gasolina, uma foto raiz, dentro da cozinha. Me esperem que haverá novas vítimas.

Claro que já existe a sensação de ter subido aquela montanha, alcançado o lindo panorama do cume e agora começar a descer. Mas não deixo a melancolia reinar, não, seu moço. Ainda tenho trabalho a fazer e sou daqueles que chupa o picolé até o palito ficar brilhando de limpo. Como diria o Chacrinha, só acaba quando termina. E sabe lá o que hoje ou amanhã ou depois de amanhã nos reserva. Rosiano está sempre pronto para abraçar um milagre, ou dois…

Tento marcar o jantar de hoje com seu Vanderlei, mas nem sempre ele olha o zap. Esqueceram que ele só faz o que dá na telha? Recorro à filha dele e ela consegue fazer ele responder. Na mensagem de áudio de nove segundos, vejo que ele se embanana todo sem saber se me chama de Marcos, Carioca ou meu amigo, sem acabar dizendo nenhuma das três coisas.

Saio mais cedo para passar no Junior e ver a questão da bicicleta. Ele diz que a irmã dele também se chama Alba Valéria e que riu muito ao saber que uma bicicleta havia sido batizada com o seu nome. Rosiano fica arrepiado com essas coincidências e não quis abandonar Alba Valéria na mão de alguém que nem lhe desse nome ou a chamasse de algo como Hermengarda ou Deusimar. Sendo assim, fechei o trato com o Junior e ela vai comigo para o Rio de Janeiro.

Alba Valéria me leva até o porto da balsa, demora menos de dois minutos. Seu Vanderlei está terminando de preparar a salada e é claro que deixou para fritar o peixe na hora. Sentamos na mesa grande de madeira de frente para o rio. Desta vez ele janta comigo. O feijão estava divino, sem nada dentro afora o tempero. Seu Vanderlei, além de tudo que eu já disse, é o motorista mais antigo da prefeitura. É convocado sobretudo para levar pessoas que precisam de tratamento médico em Belo Horizonte. Amanhã levará uma senhora e vai aproveitar para visitar sua mãe e seus irmãos.

Quando estávamos no começo da conversa, ainda ligando a nossa máquina de risadas, chegou mais um personagem, desta vez, indesejado: um catrumano. Barba cerrada, voz esquisita, logo perguntou a seu Vanderlei onde estava a cachaça, meteu a mão e pegou um pedaço de peixe… Minha “simpatia” por ele foi instantânea. Terminei rapidamente de comer e logo arrumei a desculpa de ir fotografar o Urucuia. Antes disso ainda ouvi o convite que ele fez para uma festa em que vai mandar matar uma vaca, patrocinar a cachaçaria e trazer quatro policiais de Arinos para organizarem uma espécie de stand de tiro. Será numa fazenda a trinta quilômetros daqui. E eu que não sabia que o acampo do Hermógenes era tão perto…

Converso um bocadinho com o balseiro, seu Diomar. Ele já foi o fotógrafo da cidade, registrando casamentos, aniversários e eventos diversos. Tem até fotos antigas da cidade. Quando pergunto o motivo de ter parado, diz que foi cansando, cansando… Agora está ali naquele trabalho de Sísifo, eternamente entre duas margens do rio, quem sabe alcançando a terceira em seus momentos a sós com o Urucuia. Mas não foi o caso de hoje, conta que está trabalhando direto desde as seis da manhã e tinha acabado de atravessar dois carros e um cavalo para o outro lado, o lado das fazendas, o que eu registrei em foto, é claro.

Depois das fotos, que vão enfeitar o mosaico, o cidadão já tinha ido embora mas eu tinha que retornar para minha aula sobre Sagarana. Apenas me despedi de seu Vanderlei desejando uma boa viagem a BH. Ao menos tenho a faixa bônus para salvar o diário de hoje:

Faixa bônus: Segunda e última parte da entrevista com Monique Figueiredo Barboza, da Central Veredas

Com a clareza de sempre, Monique explica que o que distingue o artesanato tradicional é que ele só existe graças à transmissão de saberes entre as gerações, através da aprendizagem direta, prática, sem escola ou manual. Mais do que uma técnica produtiva, o artesato tradicional faz parte de um modo de vida que inclui a natureza, integra-se a uma cultura, da qual faz parte e ajuda a mesma a continuar a existir. As fiandeiras, as tecelãs, as artesãs do buriti, rezam, cantam, contam histórias e se ajudam mutuamente.

Antes, como suas comunidades estavam isoladas e não havia como comprar roupas, fiavam e teciam suas próprias vestimentas. Desejando tingi-las, passaram a utilizar os recursos naturais para isso: barro, anileira (para azul), abacate, folha de manga (para verde), baru (para marrom claro e escuro), jatobá (para marrom), casca de cebola (para mostarda), amoreira (para amarelo), cedro (rosa), folha de eucalipto (para cinza). A cor fica bem fixada e se pode até lavar, há clientes, diz ela, que tem o produto há onze anos com cor firme.

Praticavam o mutirão. Quando a filha de uma “comadre” ia se casar, por exemplo, todas elas iam para a casa dela para com sua roda de fiar e seu algodão. Ao fim do dia, tudo que fosse produzido era entregue à noiva. Enquanto isso, os maridos trabalhavam na roça para preparar o plantio da colheita que iria sustentar o futuro casal.

Hoje em dia, o artesanato tradicional encontra-se em processo de ruptura e possível desaparecimento. Às novas gerações não interessa um modo de vida que não garante um salário estável nem tampouco uma renda substancial. Aos poucos, as artesãs vão abandonando a atividade por estarem com idade avançada, sem falar nas que vêm a falecer. Nos últimos quinze anos, avalia Monique, o número total delas nas oito associações passou de cem para trinta. E não para de diminuir. A Central Veredas está tentando reverter esse processo através do estabelecimento de uma demanda contínua que permitiria garantir uma renda regular para as artesãs. Mas não é fácil.

Ligado a isso temos a destruição do meio ambiente em que antes se desenvolvia essa atividade. O artesanato tradicional é ecológico e sustentável: só se arranca um braço de buriti já seco, já morto, a retirada dos materiais se dá em uma proporção e em uma velocidade que permite à natureza se recuperar e florescer. Não ocorre o mesmo com a pecuária, para a qual se devasta o Cerrado, muito menos com o plantio de eucaliptos, que não só implica no deflorestamento mas também no esgotamento do solo e na diminuição brutal do volume de água de rios, córregos e riachos.

Nascida e criada em Riachinho, Monique é testemunha deste processo de degradação ambiental. Quando criança, morava à beira do Urucuia, que era fundo, os pais não deixavam os filhos nadarem nele, por ser perigoso. Hoje, no mesmo ponto, dá para atravessar o rio andando. Uma tia dela morava em Urucuia, em uma fazenda de café perto da Vereda da Mutuca. Antes era funda, na prática uma lagoa, só com buritis em volta. Hoje a água bate no joelho e já construíram casas e até churrasqueira em torno.

Ela diz que há pivôs de irrigação por toda a parte, alguns com até um quilômetro de comprimento. Eles sugam continuamente a água dos rios, riachos, veredas e fontes. Há árvores, feito o murici, que praticamente desapareceram, quando antes qualquer criança andava, encontrava e comia o fruto. Sua filha, hoje, desconhece o que seja o murici.

Mas houve também melhora, sobretudo no aspecto educacional: antes, para fazer o curso superior, tinham que ir a Brasília. Agora há cursos bons, como Agronomia, no próprio Instituto Federal sediado em Arinos, sem falar em inúmeras faculdades em Unaí, a menos de 150 quilômetros, dá até para ir e voltar no mesmo dia.

A maior esperança talvez resida no baru, uma castanha natural da região, muito saborosa, semelhante não na aparência mas no gosto à castanha de caju. E com uma diferença: o baru tem o maior teor protéico de todas as castanhas brasileiras. Tem tanta gordura que de início os pais não deixavam os filhos comerem por acharem que o baru agravava as feridas. Hoje essa castanha é exportada para os Estados Unidos e Canadá pela COPABASE ,uma cooperativa de agricultura familiar. Já há uma companhia norte-americana explorando (inclusive no sentido ruim do termo, pagando valores muito baixos) a sua comercialização. Sorrindo, Monique diz que o baru tem outras propriedades, sendo chamado até de “o Viagra do Cerrado”. Verdade ou não, o fato é que tem dilatado a renda de muitos pequenos proprietários, que hoje conseguem de 3 a 4 mil reais por mês. Cita o exemplo de seu Chiquinho, de Riachinho, cuja família antes vivia de bolsa família. Com o dinheiro proveniente da venda do baru, seu Chiquinho pagou o casamento da filha e conseguiu que os filhos não fossem embora (muitos vão para Brasília), mas continuassem a trabalhar com ele.

Outro exemplo bem sucedido: hoje a COPABASE vende seus principais produtos em todos os supermercados Carrefour de Brasília: açúcar mascavo, farinha de mandioca orgânica e polpas de frutas locais com 100% de fruta, sem adição de água ou açúcar. Nas escolas da região, o suco feito destas polpas é parte integral da merenda.

Pode ser que o desafio seja enorme, talvez intransponível, mas ao conhecer Monique e o trabalho da Central Veredas, tenho a certeza de que a luta está em boas mãos.

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