/EMBRULHANDO O PEIXE

EMBRULHANDO O PEIXE

Dizem que jornal velho só serve para embrulhar o peixe no dia seguinte. É uma pena que a avalanche de notícias diárias soterre a reflexão que se faz necessária diante de certas informações. Nos últimos dias, em variados jornais, O Globo, Folha de São Paulo e New York Times, li artigos que mereceriam parar para pensar. Uma das dificuldades em fazer a leitura da “realidade” através dos jornais é que nele as informações aparecem desmembradas, fragmentadas, especializadas. O trabalho real de “leitura” consiste em tentar estabelecer relações.

Por exemplo, tomemos matérias diferentes, em jornais diferentes e em artigos de natureza diversa que vieram à luz no final do mês de outubro de 2014. Ana Maria Machado, presidente da ABL, em um artigo publicado em O Globo alerta para o fato de que uma das nascentes do Rio São Francisco secou. Em outra matéria, informa-se a criação de um tipo de eucalipto transgênico, que cresceria ainda mais rapidamente, obviamente consumindo ainda mais água do que o habitual e ainda por cima envenenando as abelhas com seu pólen monstruoso. Na mesma notícia ficamos sabendo da intenção em ainda multiplicar muitas vezes a área plantada com esta espécie que desertifica o solo e não oferece nenhum suporte à fauna: passarinho de verdade não pousa em “floresta” de eucalipto. Some-se a isso algo publicado na Folha de São Paulo: a cidade de Campinas vai passar a reaproveitar a água proveniente do tratamento do esgoto para, depois de uma segunda “filtragem”, ser utilizada para consumo. No mesmo jornal, um cientista renomado, depois de examinar 300 artigos especializados, afirma que 20% da Amazônia já foi destruída e outros 20% sofreram uma agressão de natureza tal (com a retirada de muitas árvores, por exemplo), que não têm mais condição de se sustentar. A conclusão é que se não plantarmos árvores na Amazônia ela deixará de exercer o importante papel de captar a umidade vinda do oceano, a qual, por exemplo, vira chuva e água nos rios paulistas que abastecem a nossa maior metrópole. A conexão entre as notícias é tão óbvia que dispensa comentários.

Por fim, aquilo que não parece ter nenhuma relação com o conjunto de notícias mencionado: a campanha política brasileira durante as eleições presidenciais, descrita pelo New York Times como “uma corrida tumultuada, marcada por acusações de corrupção, insultos pessoais e debates acalorados, revelando uma polarização crescente no Brasil”. Creio que tanto dilmistas quanto aecistas concordariam com essa caracterização. Em uma eleição travada numa chave maniqueísta, de Bem contra Mal, só se trocando a posição de Bem e Mal de acordo com a posição de cada um, não há espaço para debater questões que são mais importantes do que a corrupção, o Banco Central ou até mesmo o Bolsa Família. Com o país literalmente ardendo em uma seca catastrófica, o tema mais importante foi deixado de lado: o nosso modelo econômico poderá perdurar dessa forma ou levará à auto-destruição?

Junto com o peixe, são embrulhadas diariamente notícias que poderiam e deveriam se transformar em uma reflexão mais aprofundada e crítica. O peixe não vive fora d’água e nós não vivemos sem ela.