/Entre “jabás” e “migués”. A verdade nua e crua do futebol brasileiro

Entre “jabás” e “migués”. A verdade nua e crua do futebol brasileiro

 

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Entre “jabás” e “migués”. A verdade nua e crua do futebol brasileiro

Marcos Alvito

Esqueça o drama do Vasco e sua luta para não tentar ser “rebaixado” para a série B. Ou as chances do Flamengo de voltar a frequentar o G-4. Quem quiser conhecer de perto a realidade do futebol brasileiro, sua verdade nua e crua, tem que ler Entre “Jabás” e “Migues”: dificuldades e desafios no dia-a-dia de um clube da segunda divisão. É uma dissertação de mestrado em antropologia defendida no Museu Nacional da UFRJ em 2012. Cumprindo um acordo feito com seus pesquisados que garantia o anonimato, o antropólogo Pedro Mourelle chamou o clube de Bandeira. Uma agremiação tradicional do subúrbio, que já ostentara uma glória relativa no passado. E que disputava a segunda divisão do campeonato carioca em 2011, época em que se deu a maior parte do trabalho de campo. Depois de literalmente bater à porta, ele se apresenta como pesquisador e é autorizado frequentar o clube. Percebendo que havia necessidade de maior inserção para que ele pudesse observar mais de perto as atividades e os jogadores, acaba se transformando em assistente técnico voluntário da equipe de juniores. Na verdade, tenta ajudar de todas as formas possíveis: logo na primeira semana transporta a comissão técnica e o material de jogo até a Baixada Fluminense para um amistoso com o América. O Bandeira simplesmente não tinha como oferecer transporte, nem aos jogadores, para aquele confronto. Na prática, o antropólogo vira um “faz tudo”: carrega cones para exercícios, coletes para treinamentos, galões de água, faz listas e sobretudo fica de olhos e ouvidos abertos para tudo que acontecia em volta.

A partir daí, o que Mourelle nos dá é uma aula sobre as entranhas do nosso futebol. As famosas “panelas”, grupos de jogadores que se opõem no interior do elenco, a inacreditável falta de infraestrutura e de condições mínimas de trabalho, a rede de fofocas e intrigas entre os membros da comissão técnica, um tramando a demissão do outro para a obtenção de um cargo sempre fugaz e extremamente problemático, as inúmeras interferências de agentes e dirigentes no trabalho da comissão técnica, enfim, tudo aquilo que não se lê nos jornais diários. Mas que é o pão nosso de cada dia, ou talvez fosse melhor dizer o pão que o Diabo amassou da maioria dos clubes brasileiros.

A despeito da quase total falta de recursos, o Bandeira era ainda uma vitrine muito disputada. Isso fazia, segundo Mourelle, que chegassem novos atletas para treinar quase todos os dias na fase que precedeu a inscrição dos jogadores na Federação para a disputa do campeonato da categoria. Aqui o sonho dourado de tornar-se jogador de futebol profissional esbarrava no chamado princípio de realidade. É aqui que Mourelle faz sua primeira grande descoberta, muitas vezes insinuada na imprensa ou nas conversas de bar, mas aqui devidamente registrada em um trabalho de investigação sério e bem fundamentado. Trata-se da frequência com que ocorria (e decerto ainda ocorre) o “jabá”. O termo se originou na indústria musical, onde “jabá” é o alegado pagamento feito pelas antes poderosas gravadoras às rádios para que determinadas músicas fossem retransmitidas. No caso do Bandeira, “jabás” era o termo nativo dado aos “jogadores que estavam no time porque ofereciam ao clube algum tipo de contrapartida”. Os exemplos são quase inacreditáveis, embora inúmeros. Um atleta integrado ao grupo graças ao pai, que permitia que os jogadores do clube utilizassem as instalações da sua academia de ginástica no centro do Rio. Um outro, também “jabá”, cujo pai engenheiro havia dado laudo positivo junto ao Corpo de Bombeiros para que o clube recebesse jogos do campeonato estadual em seu estádio. O clube não dispunha, à época, dos três mil reais necessários para o pagamento do laudo. E o que dizer do jogador incorporado ao grupo em troca de seis novas fitas elásticas para treinamento?

Johannesburgo-Pele encontra com crianças africanas e reforça a importância da copa na áfrica do sul, evento contou com a presença crianças de varias idades que receberam incentivo do rei para a pratica do esporte. Após a coletiva Pele cumprimentou o neto de Mandela, Chief Mandela , dançou com nativos e assistiu as crianças brincando com a bola.

Jogadores reunidos antes do início do coletivo. Foto: Marcello Casal Jr. – Agência Brasil.

Além dos “jabás”, vistos no clube como um “mal necessário”, Mourelle atestou também as interferências de “empresários” e dirigentes. Embora a maioria dos jogadores profissionais ganhasse cerca de um salário-mínimo e a despesa com os vários profissionais das diversas comissões técnicas (dos juvenis, juniores e profissionais) chegasse a apenas oito mil reais, o clube não tinha a menor condição de cumprir com suas obrigações. Nas quais se incluíam, diga-se de passagem, quarenta e cinco mil reais a serem pagos à Federação para regularizar os jogadores de todas as categorias. Isso abria a porta para que um agente que Mourelle rebatiza de Ânderson oferecesse um cheque de cem mil reais quando faltavam nove dias para começar a única competição “de peso” que o clube disputava durante o ano inteiro. Uma oferta que não foi recusada, já que àquela altura, só para que a leitora ou o leitor tenha uma ideia, nenhum dos atletas profissionais do clube estava sob contrato. Embora o tal cheque servisse para cobrir apenas um terço das despesas necessárias em toda a temporada, ele deu a Ânderson o poder de interferir na dispensa e contratação não somente de jogadores mas também de membros da comissão técnica. É o que ocorre com um supervisor que teria sido demitido sob a alegação de que teria dito que o empresário em questão estava tendo um caso com a psicóloga do clube.

Feito a ostra, que fica entre o mar e o rochedo, diante dessa realidade qual o papel do técnico? Obrigado a escalar “jabás” e protegidos de diversas origens, ou ao menos fingir que os escala, é aí que surge a necessidade do “migué”, isto é, das manobras de despistamento, para o falso atendimento às demandas. O que leva a toda a sorte de artifícios. Como a realização de dois treinos: um para o grupo principal e outro, mais rápido, de apenas meia hora, para os jogadores enviados para teste por pessoas influentes no clube ou pelo “empresário” que naquele momento dava as cartas. Esses “indicados” às vezes eram tratados como a mulher bonita do vendedor de mate na praia, aquela que não paga mas também não leva. Não eram nunca dispensados, mas de uma forma ou de outra não eram escalados, a não ser numa emergência ou quando a pressão era impossível de ser suportada.

O amadorismo da gestão, a precariedade, a eterna disputa entre todos que participavam da gestão do futebol do Bandeira, tudo isso compõe o quadro retratado com maestria por Pedro Mourelle. O resultado final, o traço dominante na vida do clube era a instabilidade. Quando o “empresário” com cheque salvador depois de um tempo começa a dever até no restaurante do clube, logo aparece outro, chamado pelo pesquisador de “João”. No que diz respeito ao time de juniores, última categoria de base antes do futebol profissional e portanto absolutamente estratégica, a situação era trágica. Contando com o pesquisador “faz tudo”, a comissão técnica se viu reduzida a três pessoas. Na verdade, apenas dois profissionais: um técnico e seu assistente, o qual tinha que ajudar também no treinamento do time profissional e coordenar os testes e as ‘peneiras’ para as categorias inferiores. Tudo isso para receber cinquenta reais por semana para o seu transporte. E que nem isso estava recebendo nas últimas semanas.

Lendo a dissertação de Pedro Mourelle, é possível inverter a pergunta tradicional. Não mais perguntar por que o Brasil perdeu a última Copa do Mundo. E sim indagar: como é que conseguimos ganhar cinco copas do mundo em meio ao caos administrativo e político do futebol brasileiro? Como é que fomos pentacampeões em meio a “jabás” e “migués”?