/ESTUDOS PROUSTIANOS – O tema da arte – a fusão do eu do narrador-protagonista e do livro

ESTUDOS PROUSTIANOS – O tema da arte – a fusão do eu do narrador-protagonista e do livro

“6) A arte – o livro que se inaugura, é o próprio eu do narrador, a transposição de sua vida através de sua visão. A ênfase dada ao ‘eu’ já foi mencionada anteriormente. É a permanência deste ‘eu’ que será atingida pela obra realizada. Enquanto houver um leitor da Recherche, este ‘eu’ viverá, presente, encaixado no fundo deste livro que é seu reflexo. Assim, a fusão do ‘eu’ do livro, na primeira sequência é significativa: ‘Il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage, une église, um quatuor, la rivalité de François Ier. et de Charles-Quint’. No mundo do sonho e do devaneio, envolto em uma penumbra propícia, tudo é simbólico. O romance é sugerido pela cadeia semântica ‘volume’ – lire – ouvrage – ‘livre’ e, redundantemente, pelos sons que compõem essas palavras; sua estrutura encontra, na igreja e no quarteto, suas imagens mais adequadas. A igreja representa a estrutura do romance e seu caráter espiritual; o quarteto, o valor artístico da obra e a experiência emocional do narrador; a rivalidade entre Francisco I e Carlos V mostra o tema aparente, a pintura da sociedade, pois a Recherche, segundo seu autor, pode ser considerada como as ‘Mémoires de Saint-Simon d’une autre époque’, isto é, uma crônica da vida mundana da belle époque. A igreja, mais do que qualquer outra coisa, representa o tempo captado e é símbolo perfeito para o romance de Proust, que, como ela, é composto de várias partes elaboradas em épocas diferentes e que perpetua, em sua forma, fatos e seres que já não existem. O narrador, em O Tempo Redescoberto, explicita os processos que pretende usar na execução de seu livro:
porque esse escritor deveria apresentar as faces opostas, para conferir peso e solidez a seu livro, precisaria prepará-lo minuciosamente, com constantes reagrupamentos de forças, como em vista de uma ofensiva, suportá-lo como uma fadiga, aceitá-lo como uma norma, construí-lo como uma igreja.
O quarteto e a rivalidade indicam os dois caminhos que se abrem ao narrador: a arte cujo apelo, na Sonata de Vinteuil, Swann não soube compreender, mas que foi sentido por Marcel quando ouviu o Septeto do compositor, e a vida estéril dos salões.”
HARVEY, Vera. Marcel Proust: realidade e criação. São Paulo: Perspectiva, 2007. pp. 130-131.