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FONTES PARA A SALA DE AULA – O cortiço como questão de polícia

O CORTIÇO COMO QUESTÃO DE POLÍCIA

Natureza e data do texto:

Passagens do romance naturalista O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Datado de 1890, ele enfoca, todavia, a vida das camadas populares no Rio de Janeiro antes da Abolição, mais ou menos por volta de 1870. Aqui temos um trecho do capítulo X em que fica bem claro como era a relação entre a polícia e os moradores deste tipo de habitação popular. A política de terror e violência seria continuada no que diz respeito às favelas.

Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.

Abre! Abre! reclamavam de fora.

João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a todos:

Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!

Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro.

E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.

Agüenta! Agüenta!

Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata.

Agüenta! Agüenta!

De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! “Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!” mas agora tratava‑se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida.

Não entra! Não entra!

E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam ferozes.

A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.

E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal, formando às pressas uma barricada.

As pranchadas multiplicavam‑se. O portão rangia, estalava, começava a abrir‑se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás dela. Os que entravam de fora por curiosidade não puderam sair e viam‑se metidos no turumbamba. (…)

Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu‑se logo; caíram tábuas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram‑se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou‑os.

Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças abandonavam o campo, à falta de ar.

Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de desforço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano.

Fora os morcegos!

Fora! Fora!

E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa!

Os apitos estridulavam mais e mais fortes.

Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada.

Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça!

Fogo!

A esse grito um pânico geral apoderou‑se dos moradores do cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!

Fez‑se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão atropelava‑se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança.

Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé‑d’água desabou cerrado”