/HISTÓRIAS DO ALVITO – A história do baiano enigmático

HISTÓRIAS DO ALVITO – A história do baiano enigmático

A história do baiano enigmático

Meu pai agora mora dentro do meu peito. E na memória. Era um baiano enigmático. Gostava de cantar certas músicas que agora, pensando bem, acho que formavam uma narrativa, uma filosofia própria. A que ele repetia como um mantra era de um professor de biologia, paulista e sambista, o maravilhoso Paulo Vanzolini:

“Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima”

Mais tarde, disse a meus filhos que, se tivessem que aprender a cantar um único samba, que fosse esse.

Papai insistia em contar e recontar certos incidentes, sem nos alertar que ali estavam escancarados os seus princípios de vida. Como o ligeiro erro gramatical mas enorme acerto existencial da frase do sargento Velécio, nos tempos do cabo de guerra:

“Ou adapita-se ou morre”

No fim da vida, quando metade do seu coração já não batia, a outra metade batia em dobro. Viveu anos além do que a lógica médica poderia supor. Sem uma reclamação. Sempre sorrindo e a cada dia mais carinhoso, mas sem chororô. Na hora da onça beber água, sozinho em casa com uma empregada muito bacana e querida, não a deixou chamar a ambulância. Sereno, pediu apenas que ela segurasse a sua mão. Deixou como dádiva a coragem e a serenidade.

Só que eu não queria contar como ele morreu. Queria contar como ele viveu. Órfão de pai aos dez anos, estudou em um colégio interno em Petrópolis. Como o refeitório era pequeno, tinham tempo marcado para comer. Toda a vida ele comeu a mil por hora, como se a qualquer momento fossem lhe tirar o prato. E quando reclamavam da sua gulodice, ria e dizia: “É fome velha”. Na adolescência, trabalhava como representante comercial de uma margarina, batendo pernas pelo Rio de Janeiro afora de padaria em padaria. Ao final do dia, lembrava, ia até uma biblioteca, contava o dinheiro, inclusive as moedas, e estudava um pouco antes de seguir para o colégio noturno. Nessa época ele era chamado de Zé Carioca, pela morenice, pelo nariz imponente e sobretudo por seu bom humor e dotes de batuqueiro. Chegou a ter um conjunto de samba com os amigos. No fim da vida, já debilitado, ainda tocava tamborim com ritmo e precisão cirúrgica. Para fazer veterinária na Rural, trabalhava na Biblioteca. Foi ainda estudante que conheceu minha mãe e o resto é história.

Mas e quanto ao enigmático? Bem, isso é o mais bacana. Muitas vezes, no jantar, com a família toda reunida, de repente nosso pai desatava num riso, que começava com um sorriso irônico e desabrochava numa gargalhada gostosa, sonora. Primeiro ficavamos perguntando a ele o motivo. Inutilmente. Ele fingia não ouvir e continuava a rir. Depois, ninguém aguentava e a mesa toda estava gargalhando sem saber o motivo. Aos poucos ele ia se acalmando, retomava a respiração normal e continuava a jantar. Não dizia uma palavra, nada como “depois eu conto” ou “mais tarde eu explico”. Nenhuma vez agiu diferente. Quando eu me lembro dele, é a coisa que eu mais gosto de recordar.

Sei que todo o enigma do meu pai reside naquela gargalhada. À medida em que vou tendo mais e mais primos, reflito sobre o significado daquela explosão de alegria repentina, sem motivo aparente. Acho que é a mensagem que ele queria deixar para sempre gravada. De que ele ria? Ria da vida. Ria por estar vivo. Porque essa é a hora.