/LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 008 – O EVOLUCIONISMO – Parte 1

LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 008 – O EVOLUCIONISMO – Parte 1

LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 008

O EVOLUCIONISMO – Parte 1

I. DA NECESSIDADE DA IMAGINAÇÃO

“Muitas das injustiças do mundo provém da falta de imaginação”
E.B.TYLOR

Não é incomum entre os cientistas sociais uma concepção grotesca do que tenha sido o assim chamado “evolucionismo”. Seria fácil identificar alguns motivos desta rejeição. Em primeiro lugar, a idéia de que ele é uma doutrina justificadora do colonialismo da era vitoriana e tão somente isto(1). Por outro lado, a divisão em selvageria, barbárie e civilização como estágios obrigatórios e inescapáveis da experiência humana ao longo da história parece-nos, além de etnocêntrica, quase infantil no seu esquematismo(2). Ironicamente, incorre-se no mesmo erro atribuído aos evolucionistas: a incapacidade de entender o “Outro” sem julgá-lo inferior.

Antes de ser julgado e avaliado aos olhos de hoje, o evolucionismo tem que ser devidamente contextualizado e compreendido na moldura das crenças e saberes que vigoravam quando do seu surgimento. Quando o fazemos percebemos o quanto ele representou de novidade e inclusive de rompimento radical com o sistema de conhecimentos da sua época. Podemos dizer, citando a famosa expressão de Bachelard, que ele foi um verdadeiro “corte epistemológico”, muitas vezes recebido com choque e repulsa, antes de se tornar meio de legitimação do establishment.

Se aplicarmos a nós mesmos o conceito de “representações coletivas” de Lévy-Bruhl, perceberemos que esta ojeriza ao evolucionismo deve ser explicada fazendo recurso aos nossos hábitos mentais. Bastaria, por exemplo, nos perguntarmos se boa parte do “estranhamento” em relação a Morgan e Tylor (para não mencionar Spencer) não assenta na destruição da “fé no progresso”, da “religião da ciência” tão característica do século XIX. Evolucionismo, funcionalismo, estruturalismo: o sufixo idêntico dá a entender que são todas “escolas”, fazendo tábula rasa das condições que marcaram o surgimento e desenvolvimento destas teorias.

Adam Kuper (p.148) lembra que, há pouco mais de meio século, havia somente 38 professores de Antropologia Social em todo o Reino Unido. Mencionei este dado, para estimular a imaginação através da pergunta: se era assim em 1953, como seria cem anos antes, em 1853? Talvez já houvesse antropologia, mas decerto ainda não havia antropólogos profissionais: Morgan (assim como Maine ou Maclennan ou Bachofen) era jurista, e seu primeiro estudo etnográfico, sobre os iroqueses (3), deveu-se ao acaso de presidir uma confraria universitária que tinha adotado o nome de “the Grand Order of the Iroquois” ou “New Confederacy of the Iroquois” (TRAUTMANN: 39). É sintomatico que ele tenha afirmado depois da publicação: “Eu deixei de lado o tema indígena para devotar meu tempo à minha profissão”). Mesmo Tylor, o qual, ao assumir sua cadeira em Oxford em 1896, talvez possa ser considerado o primeiro antropólogo profissional, também jamais “aprendeu” antropologia. Seu interesse surgiu quando juntou-se à expedição arqueológica de Henry Christy (homem de negócios, aliás) ao México – origem do seu primeiro trabalho etnográfico(Anahuac, em 1861) (KARDINER & PREBLE: 55-6).
Em outras palavras, o que estou querendo salientar é o fato de que devemos lembrar que tendemos a ler a teoria do animismo de Tylor, por exemplo, com os olhos de Durkheim, Mauss e Lévi-Strauss (FINLEY: 14):

“Nós lemos (ou vemos) Sófocles tendo lido (ou visto)Shakespeare, da mesma forma que olhamos para a escultura grega arcaica com olhos e mentes que experienciaram Michelangelo e Henry Moore. A grande tradição é bi-direcional.”

Caso sejamos capazes de imaginar o quão revolucionários foram os estudos de Morgan e Tylor para a sua época, teremos condições com justeza o valor da contribuição dos mesmos para a antropologia. Ouçamos Marvin Harris (p.210):

“a opinião educada da época vitoriana achava difícil acreditar que a fidelidade conjugal, o respeito filial, e o amor a Deus não fossem nada além de artifícios humanos, lentamente desenvolvidos através de julgamento e erro e destinados a serem substituídos por ainda desconhecidas mas igualmente mundanas disposições.”

Basta de julgar o evolucionismo com os valores do relativismo hodierno. É preciso contrapô-lo ao criacionismo, ao degradacionismo e às explicações religiosas em geral. Como lembra Stocking (p.76, referindo-se à polêmica de Tylor com os “poligenistas”) : “É difícil avaliar o calor que certa vez emanava das cinzas espalhadas de controvérsias mortas há muito tempo. Tylor ainda menciona (1912: 30) a versão de que os objetos de pedra houvessem sido fabricados por raios: o que para nós é risível, para ele era ainda uma hipótese a ser rechaçada. Em Origins of Culture, há a preocupação explícita em demonstrar a falsidade da teoria “degradacionista” (pp.15-6):

“E assim, em outros campos da nossa história, aparecerão repetidamente séries de fatos que podem ser consistentemente agrupados como tendo seguido uns aos outros em uma ordem particular de desenvolvimento, mas que dificilmente suportariam ser invertidos e colocados em ordem inversa. Tais, por exemplo, são os fatos aqui apresentados no capítulo da arte de contar, que tendem a provar que, até este ponto da cultura, pelo menos, asa tribos selvagens alcançaram sua posição através da aprendizagem e não o contrário, elevando-se de um estádio científico inferior e não degradando-se a partir de um estádio mais elevado.”

George Stocking (p.79) alega, inclusive, que a ênfase na “invenção independente” existente em Anthropology- em detrimento de aspectos difusionistas mais presentes em outras obras – visava exatamente uma melhor fundamentação do ataque aos degradacionistas. Também Lewis Morgan (1946: 75) insiste em afirmar que a comunidade de maridos e esposas era um “lei do estado selvagem” e não fruto da degeneração de costumes a partir de um estádio civilizado. Tylor diz claramente que os dois maiores obstáculos à investigação das leis da natureza humana eram a metafísica e a teologia, principalmente no que diz respeito à popular noção do “livre arbítrio humano”.

Mesmo que o meu objetivo, seja muito mais o de compreender do que julgar, não irei fugir às questões de raça, para que a minha tentativa de contextualizar o evolucionismo não incorra numa idealização. O método adotado será comparar os dois autores, Lewis Morgan e Edward Tylor em termos de objeto, métodos e resultados.

II. HISTÓRIA UNIVERSAL (O OBJETO)

“É, aliás, sinal de progresso e de apuro da disciplina o fato de eminentes antropólogos se considerarem modestamente etnógrafos. Mais recuadamente no tempo, o antropólogo consagrava-se diretamente às operações de síntese e de generalização; toda a ciência começa pelas tentativas mais ambiciosas.”
Paul MERCIER

A melhor definição que conheço do objeto de estudo e dos objetivos dos evolucionistas foi dada por Spencer (apud HARRIS: 159) em um artigo publicado em 1859: “A coisa que realmente nos interessa é a história natural da sociedade. Note-se a indeterminação: a “sociedade” significa aqui todas as sociedades humanas ao longo da História ou, como diz Mercier (p.40), “a totalidade da cultura humana no tempo e no espaço”. Poderíamos, portanto, chamar Morgan e Tylor de “historiadores universais”, como faz Marvin Harris (p.169). Examinemos, contudo, algumas diferenças tem ticas entre Tylor e Morgan.

A mais gritante reside no abandono por parte de Morgan do tema da religião e de sua evolução, pois considerava o assunto irracional demais para ser entendido cientificamente. Ao contrário, Tylor dedicou uma parte importante da sua obra ao estudo do animismo, para ele a mais primitiva forma de manifestação religiosa. A ênfase de Morgan vai dar-se em torno de dois pólos: as artes de subsistência e as formas de família relacionadas à terminologia de parentesco (a partir de extrapolações lógico-dedutivas). A associação destes dois elementos permite formar o esquema mais amplo dos três diferentes períodos étnicos e de suas subdivisões. A “Barbárie Inferior”, por exemplo, seria iniciada pela invenção ou adoção da cerâmica por volta de 20.000 a.C. e seria marcada pela “vida melhorada e aumento das comodidades domésticas.” Em termos das formas de família, já haveria matrimônio em pares simples mas sem coabitação exclusiva, sendo a família ainda frágil. O casamento durava de acordo com a vontade das partes. Estariam neste estágio os indígenas dos Estados Unidos à época de Morgan, como os iroqueses, dentre outros.

Quanto a Tylor, seus interesses espraiam-se por uma ampla gama de assuntos, pois como ele mesmo define (1912: ix):

“Os vários ramos da ciência do homem são extremamente múltiplos e abarcam desde o corpo à inteligência, desde a linguagem à música, desde o acender do fogo à moral.”

De fato, a obra que examinamos mais detidamente, Anthropology (na sua edição espanhola) aborda desde os ensinamentos da arqueologia e da geologia acerca das épocas pré-históricas (e históricas também) até “o desenvolvimento dos conhecimentos, das artes das instituições que constituem a civilização” (1912: 41); passando pela descrição (fartamente ilustrada) das diferentes raças humanas e pelo exame da “natureza e crescimento da linguagem”. Certo que se trata de um manual de antropologia (o primeiro, aliás), mesmo assim, arrisco dizer que ainda respirava-se um ambiente intelectual algo “enciclopedista”… Eis mais uma razão para a incompreensão de que são vítimas os evolucionistas: aos olhos dos hiper-especializados cientistas sociais de hoje, tal ciclópica aventura intelectual pode parecer charlatanismo, embora fosse a explicação mais científica existente na época.

(Amanhã a 2a. parte e a BIBLIOGRAFIA DO TRABALHO)