/LEITURAS DE FILOSOFIA # 001 POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE – Gilles Deleuze

LEITURAS DE FILOSOFIA # 001 POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE – Gilles Deleuze

LEITURAS DE FILOSOFIA # 001

POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE, Gilles Deleuze

Este texto do filósofo francês Gilles Deleuze se torna a cada dia mais atual, praticamente profético, ao alertar para uma “mutação do capitalismo” e para a “implantação de um novo regime de dominação”. Estaríamos deixando para trás as “sociedades disciplinares” na direção das “sociedades de controle”.

Apoiando-se em Foucault, Deleuze afirma que as sociedades disciplinares formaram-se nos séculos XVIII e XIX e tiveram seu apogeu no século XX. Assim descreve sua característica central:

“Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (‘você não está mais na sua família’), depois a caserna (‘você não está mais na escola’), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico”

Após a Segunda Guerra Mundial as sociedades disciplinares entram em crise:

“Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um ‘interior’, em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir a sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam.”

As sociedades disciplinares estariam sendo substituídas pelas sociedades de controle. E quais seriam as diferenças entre confinamento e controle e, consequentemente, entre sociedades disciplinares e de controle? Responde Deleuze:

“Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro.”

E dá o exemplo da passagem da fábrica à empresa, dos salários aos prêmios e da solidariedade à competição entre os operários:

“Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios, mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento da massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo.”

Este modelo empresarial logo se estende a outras áreas, como a Educação:

“O princípio modulador do ‘salário por mérito’ tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.”

Deleuze alerta que não se trata de uma modificação meramente tecnológica e sim de uma “mutação do capitalismo”:

“É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim:
o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção.”

Já hoje em dia:

“o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com freqüência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas mais complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado.”

Isso tem consequências importantes e assustadoras:

“ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. (…) A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a ‘alma’ da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo.”

Passa a haver um novo meio de controle social e um mar de despossuídos vistos como problema para o sistema:

“O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.”

A tecnologia está tão desenvolvida que há a possibilidade de um grau de controle da movimentação individual que nunca foi sonhado nem sequer pela ficção científica:

“Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa. Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (individual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.”

Por fim, Deleuze pergunta se saberemos lutar contra esse novo regime de dominação, alertando para o fato de que alguns até já o naturalizaram:

“Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda a sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle ? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de
combater as alegrias do marketing ? Muitos jovens pedem estranhamente para serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas.”

Fonte: DELEUZE,Gilles. “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle” (L’ Autre Journal, no. 1, maio de 1990), In: Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro:Editora 34,1992. pp. 219-226.