/LEITURAS DE HISTÓRIA # 001 – Parte 2 (final) – OS CANGACEIROS, Luiz Bernardo Pericás

LEITURAS DE HISTÓRIA # 001 – Parte 2 (final) – OS CANGACEIROS, Luiz Bernardo Pericás

LEITURAS DE HISTÓRIA # 001 – Parte 2 (final)

OS CANGACEIROS, Luiz Bernardo Pericás

Mulheres no cangaço? Claro que havia. Normalmente de origem humilde, algumas ingressavam por sua própria vontade, vendo naquela vida uma possibilidade de maior liberdade e aventura. Mas também havia jovens raptadas pelos cangaceiros, procedimento aliás que ocorria igualmente entre as elites da época. Há que levar em conta que à época não era incomum que as moças se casassem com 12 anos, o que era devidamente aceito pela Igreja. Os cangaceiros despertavam interesses nas jovens das localidades quando participavam de bailes, abalando o marasmo.

Era muito comum também que os bandoleiros frequentassem prostitutas, na maioria das vezes como clientes normais, mediante pagamento. O estupro, todavia, era prática frequente, usada como uma espécie de “estratégia de guerra”: em 1923, em Bonito de Santa Fé, na Paraíba, Lampião ordena a 25 dos seus homens que violentem a esposa de um delegado de polícia. Diga-se de passagem que os “homens do governo”, isto é, as volantes, faziam a mesma coisa.

Pericás acredita que o início da relação de Lampião com Maria Bonita em 1930 teria tornado o bando menos violento. Seja lá como for, o que se sabe é que não se permitia a presença de mulheres sem maridos ou companheiros no bando e caso uma delas ficasse solteira ou viúva teria logo que escolher outro parceiro ou abandonar o grupo. As mulheres do bando eram normalmente muito jovens, meninas ou adolescentes, mas os cangaceiros também eram, normalmente ingressavam no bando antes dos 18 anos e raramente tinham mais de 26 anos. As mulheres do bando
desfrutavam de respeito. As traições, todavia, não eram perdoadas, sendo punidas com a morte. O mesmo, diga-se de passagem, também ocorria entre famílias ricas do sertão.

No interior do bando, havia divisões além da de gênero. Abaixo do chefe, havia a tropa com algum status, encarnado no fato de que tinham direito a um apelido próprio e muitas vezes chamados de “rapazes” ou “meninos”: os rapazes de Lampião ou os meninos de Corisco. Os principais homens eram tratados pelo chefe por “compadre” e tinham o direito de se dirigir a ele como “você”.Depois viria uma massa anônima de cabras, termo pouco honroso.

Os cangaceiros não se consideravam ladrões, bandidos ou criminosos, isto era para eles uma ofensa inaceitável. Em uma mensagem de Lampião escrita na parede de um bilhar em 1929, em Sergipe, ele diz aos soldados das volantes que o perseguiam:

“Salve eu, famoso Lampião. Deixo esta lembrança para os oficiá que por aqui passá e tiver o trivimento mi persigui. Me descurpe as letas, que sou analfabeto. Sou um bandido cumo me chamo, mas não mereço o nome de bandido. Quem pode ser bandido é os oficiá que andava roubando e deflorano as famia aleia.”

Os cangaceiros estavam longe de ser contestadores do sistema. Já vimos na primeira parte que eles se inseriam tranquilamente no sistema político da época, fazendo alianças e recebendo proteção de proprietários e autoridades. Além disso, o modelo do chefe do cangaço era o mesmo modelo do coronel. Lampião gostava de ser chamado de “o governador do sertão” (por vezes o rei) e de “Capitão Virgulino Ferreira”, como os proprietários de terras e seus títulos da Guarda Nacional.

Além disso, embora vivendo enfiados nas localidades mais distantes do sertão, os cangaceiros eram apreciadores de produtos modernos: água de cheiro, relógios Omega, sabonetes Eucalol para lavar os cavalos, óculos escuros. Sem falar nos gostos de Lampião: queijo holandês, vinho, caneta tinteiro da marca Sardinha e pastilhas Valda para quando ficava rouco. Claro que havia todo um lado arcaico das crenças e supertições, dos símbolos imperiais nos chapéus e por aí vai.

Por desconhecimento e por um enorme desejo de que fosse uma possibilidade verdadeira, na década de 1930 o PCB via nos cangaceiros um enorme potencial revolucionário. Para o Comitê Executivo da Internacional Comunista, em documento de 1931:

“Em relação ao movimento cangaceiro, o PCB deve empenhar-se na tarefa de estabelecer contatos mais estreitos com as massas de grupos de cangaceiros, postar-se à frente de sua luta, dando-lhe o caráter de luta de classes, e em seguida vinculá-los ao movimento geral revolucionário do proletariado e do campesinato do Brasil.”

Doce ilusão. A realidade era outra: o cangaço podia e era usado com propósitos conservadores e retrógrados. Cinco anos antes do documento da IC, em 1926, o Padre Cícero mandou convocar Lampião para uma reunião em Juazeiro. Lampião temeu uma emboscada, mas diante de uma carta com a assinatura do clérigo que ele muito respeitava aceitou. Foi para Juazeiro com uma tropa de 49 cangaceiros. Foi muito bem tratado, bem como seus homens. A proposta era simples: Padre Cícero queria que Lampião se engajasse na luta contra a Coluna Prestes. Como pagamento, Lampião e seus homens poderiam se movimentar livremente entre os estados nordestinos e Virgulino Ferreira recebe uma promoção a Capitão. Lampião recebe um belo uniforme azul, chapéu, botas, armamento e munições. Boa parte do seu bando também recebe uniformes e equipamento militar moderno.

Há apenas um detalhe: a carta era falsa e a “promoção” a capitão nada valia. Só que Lampião, acostumado a lidar com a elite, conhecedor do comportamento das autoridades (inclusive eclesiásticas), não cai naquele verdadeiro “conto do Vigário”. Deixa de lado a Coluna Prestes e continua a sua vida de cangaceiro até encontrar a morte em Angicos.

A leitura do livro de Pericás, que faz uma espécie de avaliação da bibliografia existente, decerto nos dá uma ideia muito mais apropriada, menos romântica e idealizada, do que foi o fenômeno do cangaço.