/LENDO COM PRAZER # 012 – PONCIÁ VICÊNCIO – Conceição Evaristo

LENDO COM PRAZER # 012 – PONCIÁ VICÊNCIO – Conceição Evaristo

LENDO COM PRAZER # 012

PONCIÁ VICÊNCIO, Conceição Evaristo

A imensa maioria dos romances publicados no Brasil é de autoria de homens, brancos, de classe média. São raros os romances publicados por homens negros ou mulheres negras. Conceição Evaristo é sobretudo poeta, tendo uma obra reconhecida internacionalmente. Ponciá Vicêncio, até agora, é seu único romance. Aqui, parte do nosso processo histórico pós-escravista é abordado, com a continuidade de um cotidiano de dominação e opressão dos negros que continuaram no campo, nas “terras dos brancos”. Os avós da protagonista haviam sido escravos, sendo que o avô enlouquecera, matara a avó a golpes de facão e depois tentara se suicidar da mesma forma, sendo impedido. Mas ficando para sempre “cotó”, numa alegoria da mutilação trazida pela escravidão. O pai de Ponciá, embora nascido livre, vivera como pajem do filho do proprietário, sendo submetido a suas crueldades e humilhações. Quanto a Ponciá, até o seu sobrenome vinha do antigo senhor de escravos, do antigo dono dos homens e mulheres da sua família.

Como era de se esperar de uma poeta escrevendo ficção, ela o faz de uma forma lírica, oscilando entre uma atmosfera de sonho e de pesadelo. Evaristo constrói a história de uma família negra despedaçada, quase uma mini-diáspora, desta vez em direção à cidade. Mas que permite imaginar o altíssimo preço humano da diáspora africana. Em meio a tudo, diante de uma vida que pouco a pouco vai corroendo o sentido do existir, Ponciá Vicêncio sabe ter um vínculo, sabe que herdou algo do avô enlouquecido e que ela, ainda menina, traduziu em uma figura de barro. O barro que ela e a mãe retiravam do rio e transformavam em peças que acabavam sendo utilizadas em toda a região. O barro que simboliza ao mesmo tempo o enraizamento, a possibilidade de criar e recriar a própria vida e a continuidade com os antepassados. A importância de perenizar algo, de manter uma memória.

As personagens do romance alternam a violência com a ternura, a indiferença com a solidariedade e o desespero com a esperança. Não há maniqueísmo, a trajetória dos diversos seres humanos é encarada com ternura e compaixão. Mas há a leitura do que é ser negro no mundo dos brancos. Para que se tenha uma idéia da beleza da prosa de Conceição Evaristo, eis o primeiro parágrafo da obra:

“Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água. Como passar para o outro lado? Às vezes, ficava horas e horas na beira do rio esperando a colorida cobra do ar desaparecer. Qual nada! O arco-íris era teimoso! Dava uma aflição danada. Sabia que a mãe estava esperando por ela. Juntava, então, as saias entre as pernas tampando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos, passava por debaixo do angorô. Depois se apalpava toda. Lá estavam os seinhos, que começavam a crescer. Lá estava o púbis bem plano, sem nenhuma saliência a não ser os pelos. Ponciá sentia um alívio imenso. Continuava menina. Passara rápido, de um só pulo. Conseguira enganar o arco e não virara menino.”