/Materiais da aula sobre “O Alienista”, de Machado de Assis – Aula na Maré em 4 setembro de 2018

Materiais da aula sobre “O Alienista”, de Machado de Assis – Aula na Maré em 4 setembro de 2018

No dia 4 de setembro de 2018 tive a honra de dar uma aula para a turma do Pré-vestibular da ONG Redes da Maré, no Rio de Janeiro.

O material de aula constou de recortes da obra, para facilitar sua utilização em sala de aula, bem como de alguns comentários para ajudar na interpretação e compreensão do texto. Eis aqui esse material:


Alguns pontos a observar em O Alienista:

1. O narrador em terceira pessoa não é, como muitas vezes ocorre, onisciente; isto possibilita e aumenta a ironia do relato, abrindo espaço para a nossa reflexão, sem dúvida o objetivo maior do texto. Veja-se, por exemplo, a questão do anel permitido àqueles que tivessem ao menos uma gota de sangue godo, no capítulo X. Há alguma incerteza quanto aos propósitos do alienista: (Cap. V) será que ele não sentiu ciúmes da mulher e por isso prendeu o poeta? Será que crime do albardeiro rico (Cap. V), além da vaidade excessiva, não foi afrontar os principais da vila (inclusive Bacamarte) com uma casa mais luxuosa do que todas?

2. A novela é sobretudo uma sátira, ou seja, um uso crítico e reflexivo do humor, desdobrada em quatro temas principais:

– Uma crítica filosófica, marcada pelo ceticismo diante da possibilidade de definir o que seja razão e o que seja loucura, pois aquele que se considerar perfeitamente equilibrado (como Simão Bacamarte) só pode ser um louco; na verdade, Machado desconfiava fortemente da ideia de uma verdade absoluta, inquestionável.

– Exatamente por isso, Machado é alérgico ao cientificismo positivista então predominante nos meios intelectuais e acadêmicos brasileiros, que propõe uma ditadura da ciência, a ser imposta a um povo ignorante e inferior, ideia, aliás, que viria a presidir a Proclamação da República 7 anos depois da publicação de O Alienista. A “Revolta dos Canjicas” (VI, p. 4) luta contra o “despotismo científico” e o alienista é chamado de tirano, sem dúvida estabelecendo uma relação galhofeira com a Revolução Francesa, mas de qualquer forma criticando fortemente a pretensão de impor comportamentos à sociedade a partir de supostos princípios científicos (a eugenia, que não aparece no texto, é um exemplo perfeito). Aqui temos, portanto, uma crítica à ciência de cunho positivista.

– Há também uma crítica à nossa cultura política: vereadores corruptos, que desrespeitam a vontade popular, curvam-se ao grande cientista que era também parte da nobreza e amigo do rei, votam mecanismo de auto-proteção casuísta colocando-se fora da alçada do alienista, mudam de ideia ao sabor das circunstâncias, punem o dissidente que vai contra o absurdo da cláusula que os protege, enfim, são muito mais um peso do que um fator de avanço de Itaguaí. Sem falar no barbeiro Porfírio, que lidera uma sangrenta revolução para esquecer seu objetivo e buscar sua permanência no poder.

– Por fim, o que talvez seja esquecido por muitos comentadores, há uma crítica ao comportamento humano, sempre falho: Crispim Soares, por exemplo, representa os aduladores que buscam se colocar à sombra de grandes homens, mas que não estão dispostos a correr riscos para defende-los; muitas das pessoas recolhidas à Casa Verde na primeira fase (desequilíbrio mental, razão incompleta) exemplificam, em vez propriamente da loucura, defeitos bem humanos: a vaidade exagerada do Mateus, a mania de riqueza de D.Evarista, o desejo de poder do barbeiro Porfírio, o medo da opinião pública do Costa. Para resumir, Machado mostra, com a acidez distanciada que lhe é característica, o ridículo e o patético inerentes ao humano.

3. Conclusão: a realização mais importante de O Alienista é dar conta, ao mesmo tempo, de questões locais, circunstanciais e questões universais, propriamente humanas.

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O Alienista (1882), de Machado de Assis (1839-1908) – Aula do Prof. Marcos Alvito – 4 setembro 2018

Em itálico está o texto de Machado de Assis. Em letra normal, o meu resumo.

CAPÍTULO I – DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES  [de loucos]

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

—A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas.

– Casa-se com D.Evarista , viúva que não era “bonita nem simpática”, estava “apta a lhe dar filhos robustos, sãos e inteligentes”, o que acaba não ocorrendo. A feiúra é vista por ele como uma vantagem: “agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.”. Sem filhos nem mulher bonita a distraí-lo dedica-se exclusivamente à medicina.

“Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada.” Elege, portanto, a “saúde da alma”, vista por ele como “a ocupação mais digna do médico.”

– Até então os loucos eram trancados em alcovas até a morte ou largados na rua, quando eram mansos.

“Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.”

– Graças a sua eloquência, Simão Bacamarte consegue que a Câmara de Vereadores aprove a proposta, estabelecendo um imposto original para custeá-la: “ a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura.”

– Com cinquenta janelas por lado e um pátio no centro, com vários cubículos para os pacientes, a Casa Verde é inaugurada com uma semana de festas, tendo vindo gente de vilas e povoações próximas e remotas e até do Rio de Janeiro.

“Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.”

CAPÍTULO II – TORRENTES DE LOUCOS

O objetivo do alienista: “O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.”

– Loucos é que não faltam vindos de toda a região e logo há que anexar mais uma galeria. Havia de vários tipos: “Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.

O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda a sua genealogia, que era esta:

—Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

—Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.”

– O boticário Crispim Soares sugere a organização da administração e encaminha a contratação de dois sobrinhos encarregados de executar um regimento da Casa Verde, liberando o alienista destas tarefas.

“Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.

Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo.”

CAPÍTULO III – DEUS SABE O QUE FAZ

– D. Evarista se sente rejeitada e fica melancólica. Dá a entender ao marido que tinha sido abandonada por “meia dúzia de lunáticos”. Simão Bacamarte autoriza que ela viaje ao Rio de Janeiro com uma grande comitiva. Quando ela faz referência aos gastos excessivos, ele lhe mostra arcas cheias de ouro e comenta, com ironia: “—Quem diria que meia dúzia de lunáticos…”

– Três meses depois parte a numerosa comitiva de D.Evarista para o Rio de Janeiro

CAPÍTULO IV – UMA TEORIA NOVA

– Simão Bacamarte confia a Crispim Soares sua nova e revolucionária teoria: “—Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. (…)

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

—Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.”

CAPÍTULO V – O TERROR

– O alienista começa a recolher pessoas e mais pessoas à Casa Verde: o Costa, que dissipou sua fortuna emprestando dinheiro a quem pedisse sem cobrar pois queria ficar de bem com todos e também sua tia que acreditava que tudo derivava de uma praga antes rogada ao pai do Costa por um escravo que lhe roubara um boi;

“A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.”

– O Mateus, um orgulhoso e enriquecido fabricante de albardas (alforjes carregados nas laterais das mulas) que tinha construído uma casa suntuosa, a primeira de Itaguaí  com mobília vinda  da Hungria e da Holanda “mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara” , e que causava inveja à “gente ilustre da povoação”, passava as manhãs no meio do jardim contemplando sua residência. À tarde, punha-se à janela trajado de branco sobre um fundo escuro para ser visto em “atitude senhoril”. Bacamarte, com “volúpia científica” vai até lá checar a informação fornecida por Crispim Soares. No dia seguinte o Costa é recolhido à Casa Verde.

“—A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.”

– Esta opinião se difunde e o medo também porque na semana seguinte mais de vinte pessoas, “duas ou três de consideração” são recolhidas à Casa Verde.

– Nas versões populares, que rechaçavam as intenções científicas, falava-se em: “Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.”

– Quando D. Evarista retorna do Rio de Janeiro, passa a encarnar as esperanças do povo de Itaguaí de que conseguisse “minorar o flagelo da Casa Verde”, sendo portanto aclamada com entusiasmo: “as flâmulas, as flores e damascos às janelas.”

– O vigário tenta semear a dúvida quanto à justiça dos recolhimentos à Casa Verde na alma da consorte de Bacamarte.

– Celebra-se um baile para 50 pessoas na casa de D. Evarista e Bacamarte, também com o propósito de adular a mulher do alienista.

– Nada dá certo porque um jovem poeta, num arroubo, afirma que depois de criar o universo, o homem e a mulher, “Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista.”

– O alienista, imediatamente, conversa com o rapaz e lhe pergunta se a imagem era sua mesmo. Ao ouvir a resposta afirmativa e a confissão do rapaz de que tinha mesmo ideias arrojadas e que davam para o épico, para as imagens grandes e nobres, reflete: “— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo…”

– Três dias depois o poeta Martim Brito é levado para a Casa Verde, providência que duas senhoras atribuíam aos ciúmes.

– Mas outras pessoas foram recolhidas e a população fica apavorada:“O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror.”

Até que vem a revolta:

“—Devemos acabar com isto!

—Não pode continuar!

—Abaixo a tirania!

—Déspota! violento! Golias!

 

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A idéia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação.”

– O barbeiro Porfírio, embora tivesse sido beneficiado pelo aumento dos clientes que lhe pediam sanguessugas depois de inaugurada a Casa Verde, revolta-se. Inclusive depois que o Coelho é preso, um homem que com ele tinha uma demanda. Isso demonstraria que as intenções de Porfírio não eram privadas.

CAPÍTULO VI – A REBELIÃO

– Lideradas pelo barbeiro, cerca de trinta pessoas levam uma representação à Câmara, que recusa “declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

—Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.”

– O barbeiro declara a rebelião para destruir a Casa Verde, fruto do despotismo científico e do espírito de ganância do alienista.

– O presidente da Câmara retruca: “—Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.”

– Os rebeldes se aquietam um pouco mas  “O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde—’essa Bastilha da razão humana’—expressão que ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele.”

“Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—’Bastilha da razão humana’—achou-a tão elegante que mudou de parecer.”

“Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas idéias na rua para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos.”

“Entretanto a arruaça crescia. Já não eram trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica—e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita—visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde,—dada a diferença de Paris a Itaguaí,— podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.”

– D. Evarista vem a saber da rebelião quando está provando um dos trinta e sete vestidos que trouxera do Rio de Janeiro e de início não quer acreditar até que: “— Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.”

– Ela tem que chamar o marido, concentrado em suas leituras, por três vezes até que ele atenda. Ele compreende tudo e fica calmo, ao contrário da mulher, que fala em morrer com ele.

“—Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero.—Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então.

—Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

—Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

—Não entendo.

—Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância…

 

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

—Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.

Disse isto o alienista e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação e quis bradar-lhes:—Canalhas! covardes! —mas conteve-se e rompeu deste modo:

Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.

E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.

—Vamos! bradou Porfírio, agitando o chapéu.

—Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.”

CAPÍTULO VII – O INESPERADO

– Intimado pelo capitão dos dragões a dispersar o grupo, Porfírio responde: “—Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí. “

– Sem motivo aparente, bem no momento em que os dragões iriam arremeter contra a multidão, um terço dos dragões passa para o lado da rebelião e em seguida o restante dos soldados. O capitão declara-se vencido e entrega a espada ao barbeiro.

“A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao ‘ilustre Porfírio’. Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.”

– Os vereadores pensavam que a tropa tinha capturado a multidão e  “votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes . Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da triste realidade. O presidente não desanimou:—Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.”

– A Câmara de vereadores entrega o poder a Porfírio, os vereadores são presos.

“Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de—”Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do povo”.—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:

“Itaguaienses!

Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo

Porfírio Caetano das Neves”.

– Todos notaram que não havia nada na proclamação acerca da Casa Verde, mas como em meio a tudo aquilo o alienista tivesse recolhido sete ou oito pessoas, das quais um homem era aparentado com o “Protetor”, achavam que a destruição da Casa Verde não demoraria e que o alienista seria preso.

– Barbeiro decreta feriado naquele dia mas vê frustradas as suas esperanças de que o vigário celebre um Te Deum [hino cristão de louvor, de agradecimento a Deus]

“Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.”

CAPÍTULO VIII – AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

– Quando o boticário fica sabendo que o barbeiro havia se dirigido à casa do alienista, acompanhado de dois ajudantes-de-ordens, fica apavorado pensando que o cientista seria preso e logo depois ele. A esposa dizia que ele deveria permanecer ao lado do amigo, mas ele era de outra opinião pois “ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver”. Sendo assim, depois de se fazer de doente, foi até o palácio de governo para declarar sua adesão ao partido de Porfírio.

CAPÍTULO IX – DOIS LINDOS CASOS 

– O barbeiro propõe um acordo ao alienista, afirmando, como dissera antes a Câmara, que “a Casa Verde é uma instituição pública” e que a questão era puramente científica. Mas cabia “haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.”

“O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.

—Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.

 

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra.”

—Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dois lindos casos!

—Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.

O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam:

—…porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo…

—Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

—Dois lindos casos! murmurou o alienista.”

 

CAPÍTULO X – RESTAURAÇÃO

“Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava “vendido ao ouro de Simão Bacamarte”, frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o ato de Porfírio! era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de “um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade”, etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinqüenta e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.”

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o.”

– Prende Crispim Soares também.

– E o presidente da Câmara, sem que esta lhe fizesse resistência. Ele “tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente estava padecendo da “demência dos touros”, um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada.”

“Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.” Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.

—Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas…”

– Mesmo Dona Evarista é recolhida por “mania suntuária”, depois de passar horas hesitando entre um colar de granada e outro de safira e de acordar de madrugada para tentar escolher. A partir daí, ninguém mais duvida dele.

CAPÍTULO XI – O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

– O alienista põe os loucos todos na rua:

“De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1′ : que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º. que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

– Itaguaí em festa, mas…

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.”

CAPÍTULO XII – O FINAL DO § 4º.

– Tudo volta ao normal, em ordem, Câmara funcionando, Porfírio empunhando a navalha ao invés da espada e João Pina perdoado a partir de pedido popular.

– Ninguém mais reclamava do alienista e os que foram soltos e reconhecidos como ajuizados até tinham para com ele “profundo reconhecimento e férvido entusiasmo”, a ponto de lhe darem mais de um baile. D.Evarista desiste de se separar do grande homem, cuja companhia não queria perder.

– Até a amizade com o boticário é retomada e mesmo o poeta Martim Brito compõe outro discurso, desta vez em homenagem ao alienista:

 

“—”cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra”.

— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade.”

 

– A Câmara permite a Bacamarte “agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

 

—A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.

 

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista e votou unanimemente a entrega.

 

Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém  à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias.

 

Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias.

 

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.”

 

– Alguns principais da vila recorrem ao barbeiro Porfírio, a quem oferecem o apoio de “todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte” para derrubar a Câmara e o alienista. O barbeiro se nega, dizendo que não voltaria a cometer o mesmo erro, que causara mortes e ferimentos que o atormentavam.

 

“— O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.

Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.”

 

– Findo o prazo, a Câmara autoriza uma prorrogação de seis meses “para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.”

 

CAPÍTULO XIII – PLUS ULTRA!

 

“Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas,—graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc.”

 

No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e eqüidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix [força medicinal] da natureza. (…)

 

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.

—Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade. (…)

 

—Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim,—ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam. (…).

Pois quê! Itaguaí. não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica? (…)

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa. (…)

—Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que

acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador:

—Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras:—a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

—A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

—Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí mas esta opinião fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes. que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.”

 

FIM