/Norbert Elias, quem diria, explica o futebol parte II – A busca da excitação e os hooligans

Norbert Elias, quem diria, explica o futebol parte II – A busca da excitação e os hooligans

Norbert Elias, quem diria, explica o futebol parte II – A busca da excitação e os hooligans

Marcos Alvito

(continuação da coluna da semana passada: Norbert Elias, quem diria, explica o futebol parte I – O processo civilizador)

O que têm em comum um jogo de futebol, uma novela de televisão, uma luta de boxe, um filme de ficção científica e um romance policial? Para Norbert Elias, são todos abarcados pela esfera do lazer. Todos teriam o mesmo papel ou função: gerar uma tensão-excitação agradável, que ao mesmo tempo permite às pessoas darem vazão a suas emoções e servem de exercício para o autocontrole. Em todos esses casos, quanto maior o período de antecedência para o desfecho, para o clímax, melhor. Em um jogo de futebol, por exemplo, uma goleada ou um jogo que praticamente se resolve nos primeiros minutos são situações sem grande interesse. Jogo emocionante é aquele em que o confronto não se decide até o final, em que qualquer um dos dois times pode vencer ou virar o resultado a qualquer momento. Da mesma forma, um romance policial que revelasse o culpado nas primeiras páginas não faria sentido. Não é somente a vitória que importa e sim aquilo que Elias chama de “excitação mimética”: criam-se tensões em situações em que não há o perigo real.

A sociedade contemporânea seria caracterizada por uma enorme pressão psíquica sobre os indivíduos, obrigados a “um controle estável dos seus impulsos libidinais, afetivos e emocionais mais espontâneos, assim como dos seus estados de espírito flutuantes”. Nelas haveria “um campo de ação muito limitado para a demonstração de sentimentos fortes”. Daí a importância da esfera do lazer, na qual os esportes e consequentemente o futebol estariam incluídos. No caso de uma partida de futebol, da mesma forma que na tragédia antiga estudada por Aristóteles, ensina Elias:

“os espectadores podem saborear (…) a excitação mimética de um confronto entre duas equipas, evoluindo de um lado para o outro no terreno do jogo, sabendo que nenhum mal ocorrerá aos jogadores nem a si mesmos. Tal como na vida real, podem agitar-se entre as esperanças de sucesso e medos de derrota; e, nesse caso, activam-se sentimentos muito fortes, num quadro imaginário, e a sua manifestação aberta na companhia de muitas pessoas pode ser a mais agradável e libertadora de todas, porque na sociedade, de um modo geral, as pessoas estão mais isoladas e têm poucas oportunidades para manifestações coletivas de sentimentos intensos.”

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Torcedores ingleses durante a Copa do Mundo de 2014. Foto: Michael Dantas – Agecom.

Tudo ótimo. Só que em alguns casos as pessoas perdem o controle, não conseguem separar entre a esfera mimética, ou seja de imitação, e a vida real. Aí o torcedor da equipe adversária vira um inimigo a ser agredido e eventualmente eliminado. A “Escola de Leicester”, criada e liderada por Elias, vai dar uma explicação para o hooliganismo que se relaciona diretamente à questão do processo civilizador e de seus patamares de violência. Elias resume muito bem esta contribuição ao debate sobre os hooligans na Introdução do livro A busca da excitação.

Muitas vezes a “agressividade” dos jovens era evocada como causa do fenômeno do hooliganismo. Elias inverte a questão: a “agressividade” não serve de explicação, ela é um sintoma que por sua vez deve ser explicado. A questão real é outra: por que determinados setores e grupos de idade da população sentem prazer em atos violentos?

A explicação fundamental residiria na marginalização sofrida por setores da juventude inglesa provenientes das camadas mais baixas das classes trabalhadoras. Seria parte de uma configuração que em outro livro ele chamou de estabelecidos x outsiders. Sentindo-se ao mesmo tempo parte da sociedade e desprezados por ela, a personalidade destes jovens seria afetada pela falta de apreço que enfrentam mesmo dentre os membros da classe trabalhadora. Embora o desemprego possa agravar-lhes a situação, não é por falta de pão que se revoltam e tornam-se (não o são naturalmente) agressivos, é por falta de sentido:

“Não existem perspectivas; não têm objectivos. Deste modo, o desafio de futebol entre equipas locais surge como o maior, o mais excitante dos acontecimentos numa vida que, de qualquer maneira, é, acima de tudo, vazia. Então, pode mostrar-se a todo o mundo que se faz parte dele. E pode voltar-se as costas à sociedade que não o parece notar. E não parece preocupar-se. Já no caminho para o jogo, no seu próprio país ou estrangeiro, não se está mais sozinho, não se está mais com um pequeno grupo de amigos diários. Agora são centenas, até mesmo milhares, do seu género. Essa situação dá força a uma pessoa. Na vida quotidiana de uma multidão, cada um passa a ter poder. Na estação do trem, no caminho para o jogo e, ainda mais, no campo de futebol, pode chamar-se a atenção sobre si próprio. Qualquer um pode atrever-se a fazer coisas que nem sequer se atreveria a fazer se estivesse só. E, deste modo, sem saber exactamente o que está a fazer, mas gozando com a excitação desencadeada, volta as costas ao sistema. Cada um pode vingar-se de uma vida vazia e sem esperança. A vingança é um motivo forte. Rasgam-se os compartimentos dos comboios; quebram-se mesas e garrafas nos bares.

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Torcida da Inglaterra em partida da Copa do Mundo de 2014. Foto: Gil Leonardi – Imprensa MG.

Parece uma explicação bastante plausível e uma descrição etnograficamente acurada do comportamento dos hooligans. Há um aspecto, todavia, desta hipótese, que é altamente questionável. Elias afirma:

“A maioria dos que se relacionam com a violência no futebol parece ser proveniente do nível mais baixo das classes trabalhadoras.”

Nesta perspectiva, o hooliganismo é visto como uma questão restrita a uma classe, que não teria desenvolvido suficientemente o autocontrole capaz de conter a excitação e de não transformar a tensão em violência física. Ele chega a dizer que estaria havendo, no caso destes grupos, um “jato de descivilização”, uma espécie de regressão do processo civilizador. Embora haja muitas diferenças entre hooligans e torcidas organizadas brasileiras, o estudo destas últimas nos demonstra que os atores da violência são provenientes de todas as classes sociais, envolvendo, por exemplo, jovens estudantes de classe média. Também no caso inglês já ficou provado que há hooligans provenientes dos mais diversos setores da sociedade inglesa.

De qualquer forma, é uma hipótese admirável e que tem um aspecto a ser retomado na próxima aula e no próximo texto desta coluna: a questão do sentido, do futebol como uma forma simbólica, o que faz avançar a questão da popularidade deste esporte no mundo todo.