/O ENGANO DE RUY CASTRO, O HISTORIADOR CARCEREIRO E A ÚLTIMA CARTA

O ENGANO DE RUY CASTRO, O HISTORIADOR CARCEREIRO E A ÚLTIMA CARTA

Quando as cartas começaram a se aproximar de 1960 a onda de tristeza foi se erguendo na alma. Sabia o ano em que elas iriam cessar. O fio da vida de Guimarães Rosa seria cortado em 19 de novembro de 1967. E me perguntava o que estaria escrito na última carta.

Enfrentei uma odisséia para estar ali, naquela tarde de outubro de 2019, consultando parte da correspondência do escritor. Três anos antes, em agosto de 2016, conhecera o lindo museu Casa de Guimarães Rosa, o mais visitado de Minas Gerais. Ali o menino Joãozito nasceu e viveu até oito anos, quando foi levado por seu avô materno e padrinho Luís para estudar em Belo Horizonte. Era residência da família e também a venda de seu Florduardo, também chamado de seu Fulô, pai de João Guimarães Rosa. Em uma parede, a transcrição de uma carta acendeu em mim uma enorme curiosidade. Rosa escrevia a seu pai solicitando informações mil acerca do sertão: nomes de plantas, pássaros e animais em geral, costumes, histórias de determinadas figuras, causos, enfim, todo o material que seu Fulô pudesse lhe enviar.

Uma das muitas questões importantes acerca da obra de Rosa em geral, mas em particular sobre o Grande sertão: veredas, é a seguinte: até que ponto Rosa conhecia o sertão mineiro? Em breve artigo na Folha de São Paulo, “O sertão inventado”, de 20 de janeiro de 2019, o grande Ruy Castro não se furta a dar uma opinião radical: Rosa não conhecia o sertão, apenas inventou. Para evitar retirar afirmativas fora do contexto, eis a citação de quase todo o texto:

“Quem lê o romance tem a sensação de que Rosa conviveu longamente com o cenário de mata seca, rios e boiadas, habitado por vaqueiros, jagunços e sertanejos com aquela fala tão própria, que seu privilegiado ouvido multilíngue captou. Eu próprio achei isso quando li o livro pela primeira vez.

Temendo desapontar o sujeito, apenas concordei. Mas a verdade é que o sertão estava mais longe de Guimarães Rosa quando ele nasceu, em Cordisburgo, MG, em 1908, do que a praia de Copacabana. Aliás, Cordisburgo, a apenas 1h30 de Belo Horizonte, fica a 710 metros de altitude —mais antissertão, impossível. Em adulto, Rosa conheceu melhor o porto de Hamburgo, na Alemanha, onde serviu como diplomata, e o Palácio Itamaraty, aqui no Rio, onde trabalhou por 20 anos, do que as veredas de Diadorim.

Pelo que se sabe, seu contato com o sertão se limitou a uma viagem de duas semanas, de mula, acompanhando uma tropa pela região onde a trama se passaria. Como fez isto em 1952, pode ter sido em função do “Grande Sertão”, publicado em 1956. Mas o que são duas semanas?

Isso não desmerece o escritor. Ao contrário, engrandece-o. O sertão não estava prontinho à sua espera para que ele o observasse, tomasse nota e descrevesse nos livros. Aliás, sou até levado a acreditar que, de certa forma, o sertão de Rosa nunca existiu. Saiu gloriosamente de sua imaginação, assim como a língua falada por seus personagens. Para mim, é tudo invenção do urbaníssimo, erudito e cosmopolita Guimarães Rosa.

O artista não precisa copiar. Ele cria.” (Ruy Castro)

A carta a seu Fulô, exposta na Casa Guimarães Rosa, dava uma pista preciosa para começar a pensar nas fontes acerca do conhecimento do sertão. Mas antes de falar nisso, é preciso apontar a simplificação existente no texto de Ruy Castro.

Guimarães Rosa não viveu no sertão, é verdade. Hoje, Cordisburgo fica perto de Belo Horizonte, mas em 1908 não era assim. Só virou município em 1939. Quando Rosa nasce, de acordo com o testemunho do próprio em seu discurso de posse na ABL, era uma povoação, uma vila somente. Se o sertão mineiro é uma civilização do couro, Cordisburgo também era: vivia das grandes fazendas de gado.

Ainda hoje, quem vai à cidade tem de um lado o centro urbano e do outro lado o campo, com bois e vacas pastando. A política em Cordisburgo era dominada por um “coronel”, da mesma forma que no norte de Minas. A arraigada religiosidade católica era a mesma, como atesta o quarto da avó de Rosa, dona Chiquinha, reconstituído na exposição do museu Casa de Guimarães Rosa. Ou seja: geograficamente Cordisburgo não era sertão, mas sociologicamente, antropologicamente, se aproximava muito.

Ruy Castro dá a entender que Rosa não conviveu com “vaqueiros, jagunços e sertanejos com aquela fala tão própria”. Conviveu sim e muito. Desde a infância. O menino Joãozito não precisou ir ao sertão, o sertão vinha até ele todos os dias. Com a chegada da estrada de ferro em 1904, os criadores de gado de Cordisburgo inventaram um novo negócio. Compravam barato o gado que vinha lá do sertão por centenas de quilômetros, trazido por vaqueiros e com certeza escoltado por um punhado de jagunços. Ao chegar, esses homens iam beber um gole de pinga, comer um torresminho e prosear um pouco, recontando as histórias do trajeto e muitas outras. Aonde iam?

À venda que ficava em frente a estação ferroviária de Cordisburgo: estabelecimento que pertencia a seu Fulô, pai de Guimarães Rosa. Por várias vezes ele brigou com Joãozito, que insistia em vagar por ali ouvindo os causos e mirando aqueles homens vindos do Norte de Minas, região que foi se transformando em espaço lendário para o futuro escritor.

Rosa deixou um testemunho sobre isso:

Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.”

O próprio pai de Rosa acabava conversando com a clientela e conhecendo muitas histórias, que depois acabava contando em família. Seu Fulô era conhecido na cidade por isso, por seu jeito expansivo e engraçado. Além de comerciante e caçador de onças, era Juiz de Paz, por isso bom conhecedor do costume das gentes. Não tinha estudado muito, mas escrevia bem, a ponto de Rosa dizer que havia herdado a “bossa” de escritor do pai. Exagero de filho ou não, Seu Florduardo deve ter escrito bastante ao filho falando das coisas do sertão. É o que pude depreender das cartas que li na Reserva Técnica da SUMAV (Superintendência de Museus e Artes Visuais).

Só pude adentrar neste templo sagrado depois de três anos de solicitação na forma de e-mails e telefonemas. Em uma ligação fui literalmente interrogado acerca das minhas intenções. Tive que reiterar meu propósito de pesquisa, minha condição de pesquisador. Quando finalmente entrei na sala onde poderia consultar o acervo referente a Guimarães Rosa, o jovem historiador responsável me explicou de forma nua e crua as regras do jogo. Eu poderia ler as cartas no computador, sob a vigilância dele e de outra funcionária. Não poderia anotar ou transcrever nada das cartas, somente o seu código, por exemplo: MCGR009_0066A. A partir daí, poderia solicitar, primeiro à SUMAV e depois à herdeira-mor a utilização dessa carta. Desde que fosse para fins não-comerciais. Disse que haviam tido muitos problemas com a filha eterna (a expressão é minha) e que queriam se precaver. Depois, começou a justificar: isso era feito para preservar a privacidade da família. Os tempos em que vivemos. Agora se contratam historiadores para serem carcereiros da documentação e ideólogos da censura.

Um mau carcereiro, por sinal. Acabei ficando sozinho na sala por longos períodos. Se estivesse mal-intencionado bastaria encaixar um pendrive e copiar tudo. Mas não foi o que fiz. Li e absorvi. Ao sair para o almoço, anotei fervorosamente o que lembrava. E depois do fim do expediente corri para o hotel para fazer mais notas. Eis o que descobri, pelo menos aquilo que eu lembro:

O escritor famoso, celebrado nacional e internacionalmente, só assinava Joãozito, seu apelido de infância, em cartas para pais, parentes e grandes amigos. Nunca deixava de pedir a benção ao pai, à mãe, à avó e ao padrinho nas suas cartas. Certa vez, pede a benção no início e no fim da carta. Seu tom é sempre leve, bonachão, alegre dentro do possível. É extremamente carinhoso tanto com familiares quanto com seus amigos. Guloso, nunca se furtava a falar de comida. Fosse para elogiar o restaurante italiano de Hamburgo, que lhe permitira fugir da comida alemã, fosse para lembrar dos pratos que a mãe fazia. Para que Joãozito matasse um pouco as saudades, Dona Chiquitinha lhe enviava geléia de mocotó, que ele tentava, mas não conseguia, comer aos pouquinhos, para durar mais.

Percebe-se que não teve uma vida fácil. Mesmo durante a faculdade de Medicina ele foi funcionário do IBGE. Sempre trabalhou muito: foi médico numa cidadezinha do interior, Itaguara, e capitão-médico da Polícia Militar de Minas Gerais em Barbacena. Estas duas ocupações, árduas, forneceram-lhe muito material humano. Junto aos policiais mais antigos, pode, inclusive, colher muitas histórias de jagunços. Diz ao seu grande amigo Pedro Moreira Cardoso que a medicina parece bonita de longe, mas que de perto é bem terrível: critica inclusive os colegas por sua arrogância. Rosa era dedicado e não se conformava com a morte dos pacientes. Além disso, como conta em outra carta ao amigo, gostava da parte abstrata mas não da parte física da profissão: apalpar, examinar de perto, auscultar, enfim, o corpo-a-corpo com os pacientes.

Depois que ingressou no Itamarati, embora a carreira estivesse bem de acordo com suas preferências – conhecer outros povos e línguas -, a lida cotidiana era brutal, Rosa fazia longos serões, às vezes virando noites, o que ele menciona nas cartas dizendo que ficava tanto tempo enfurnado no escritório que nem sabia se era dia ou noite. D’outra feita usa a expressão: “não tinha nem meia hora para me coçar”. Sem dúvida devia passar muitas outras noites em branco escrevendo, o que não deve ter contribuído para a sua saúde.

Por falar nisso, as cartas permitem perceber a deterioração progressiva da sua saúde. Comia bem, engordava ao longo dos anos. Fumava bastante. Além das longas horas, seu trabalho envolvia uma responsabilidade imensa, sobretudo depois que ficou sendo responsável pelo Serviço de Demarcação de Fronteiras. Em 1954, quando tinha apenas 46 anos, escreve aos pais reclamando de problemas de saúde. Quatro anos depois, em outra carta, reclama de pressão alta, logo ele que sempre tivera pressão baixa. Depois de sofrer o primeiro enfarte, escreve uma carta ao pais em que fala da sua filosofia (lamento não ter podido copiar as palavras exatas), de como Deus e a religião estão no centro de sua vida. Também relata que o médico sugeriu moderação na alimentação e nas emoções, desta forma poderia viver até os 90 anos. Sabemos que nos últimos anos Rosa evitava até mesmo festas familiares, receando morrer de emoção, o que também teria adiado em quatro anos sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Ao contrário do jovem historiador, não estou censurando nada que li. É que simplesmente não há nenhuma carta expondo a “intimidade”. As cartas para a primeira esposa devem estar guardadas a sete chaves em outro lugar, para serem lidas pelas traças. Há apenas um telegrama chamando atenção para um resultado, que, pela data, deve dizer respeito ao famoso concurso da Livraria José Olympio em 1938, em que Rosa tirou segundo lugar.

Pelo que depreendi das cartas, a vida financeira de Guimarães Rosa também não era das mais tranquilas. Reclama bastante dos parcos vencimentos, insuficientes no Brasil e ainda mais quando estava trabalhando em embaixadas no exterior. A isto se somava a necessidade, da qual ele nunca fugiu, de ajudar aos pais, aos irmãos e depois às filhas. Ele tinha um verdadeiro horror ao Imposto de Renda e rebatizou a sigla I.R. de Impiedosos da Rapina. Tirava todas as suas dúvidas, item a item, com o grande amigo Pedro Moreira Barbosa.

Pedro Moreira Barbosa era natural de Paraopeba, praticamente vizinho de Rosa em Cordisburgo. Mas só se conheceram numa pensão em Belo Horizonte, quando ambos estudavam Medicina. Pedro se formou, mas além de médico se tornou comerciante e industrial bem-sucedido, com negócios no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e na sua cidade natal. Pedro vivia resolvendo problemas para Rosa, sobretudo quando este vivia no exterior: conseguindo certidões, adiantando pagamentos e até emprestando dinheiro ao amigo escritor. O acervo tem muitas cartas de Rosa ao amigo “Pedrão”. Certa vez, escrevendo a um embaixador brasileiro, se não me engano em Genebra, Rosa apresenta o amigo como seu irmão, mais do que isso: como se fosse o próprio Guimarães Rosa.

Rosa adorava ir à fazenda de Pedro em Pindaíbas, onde havia o córrego das Pindaíbas. Certa vez ele lá conheceu um capiau chamado Mechéu. Vinte anos depois, Rosa pede informações ao amigo sobre o tal homem, transformado em um conto do livro Tutaméia, o último que ele publica em vida. É um bom exemplo de como Rosa primeiro buscava conhecer ao máximo, para depois inventar livremente. Não copiei a carta de Rosa a Pedro, mas transcrevo um trecho da mesma que aparece no discurso de Mário Palmério, sucessor de Rosa na ABL:

Mas, meu velho, antes que eu me esqueça, acuda aqui ao seu parente. Estou, afinal, pondo em papel a biografia romanceada do grande MECHÉU, e preciso, sem falta, de mais alguns dados. Por amor-de-Deus, mande-me, pois, o seguinte:

I – Como era, mais ou menos, a fisionomia dele? A expressão? O aspecto?

(Sei que era alto e magro, mas gostaria de saber também o formato da cabeça, cabelos, se tinha pescoço fino ou grosso, cor e tamanho dos olhos, barba ou não barba, cor da pele, formato das orelhas, e outras peculiaridades que ocorram).

II – Que fazia ele, em geral, à tarde, acabado seu serviço?

III – Além de tratar dos porcos, preparar a boia suína na masseira, levar comida à roça, para os camaradas, tinha ele mais algum serviço?

IV – E aos domingos, que fazia?

V – Era religioso? Supersticioso?

VI – Andava descalço?

VII – E em matéria de vestir-se?

Que chapéu usava, por exemplo?

Gostava de vestir roupa velha que vocês lhe dessem?

VIII – Tinha algum modo especial de caminhar?

IX – Dedicava alguma especial inimizade aos cachorros? Maltratava os animais?

X – Que coisas gostava mais de comer?

Gostava de cachaça?

XI – Na fala: gaguejava? Ria muito ou pouco?

Que é que lhe dava mais raiva?

Nada de preguiça, oh Peréra! Forneça-me isto e mais alguma coisa marcante ou engraçada, que lhe vier à lembrança, sobre o inolvidável Hermenegildo. Recorra também ao nosso Américo. E eu bendirei mais uma vez o pronto e eficaz auxílio (que dá sorte). Você está lembrado do questionário sobre as “vozes de comando” do carreiro, com o qual você me espanou a memória, para o Sagarana?”

Como podemos ver, estamos muito longe da invenção pura e simples suposta por Ruy Castro. Seu Florduardo que o diga. Nas cartas que li ele é bombardeado frequentemente por pedidos do filho. Mesmo quando envia o solicitado, Rosa sempre pede mais e mais. Seu desejo de conhecer ao máximo detalhes da vida da gente do interior de Minas era infinito. Da mesma forma que fizera com o amigo Pedro, quando o livro era publicado fazia questão de apontar a Seu Fulô tal e qual trecho para o qual o pai havia lhe fornecido material. Rosa enumerava detalhadamente o que desejava saber. E chega a sugerir que uma das irmãs auxilie o pai a reunir as lembranças, o que faria, segundo ele, com que toda a família fosse autora do livro.

A palavra ficção vem de fictio, algo que é criado, inventado. Não significa algo falso. O próprio Rosa responde a esta questão do falso e verdadeiro em uma linda passagem da novela “A hora e vez de Augusto Matraga”:

direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”

Qualquer um que tenha lido e minimamente entendido o Grande sertão: veredas, percebe que ele se passa no sertão geográfico, mas que seu tema é o sertão existencial. O próprio Guimarães Rosa explica, ponto a ponto:

como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los [seus livros]:

a) Cenário e realidade sertaneja: 1 ponto

b) Enredo: 2 pontos

c) Poesia: 3 pontos

d) Valor metafísico-religioso: 4 pontos”

E assim iam se sucedendo as cartas. Depois de um certo tempo, quando a vigilância se abrandou, fiquei sozinho na sala com Joãozito. Comecei a ouvir a voz dele. A imaginá-lo, quase a conversar com ele. A documentação havia sido competentemente arranjada em ordem cronológica. De início não pensei nisso. Mas aos poucos fui sentido a onda de melancolia a que me referi no início deste texto. Chegaria o momento de ler a última carta daquele acervo.

Data de 30 de maio de 1967, menos de seis meses antes da morte de Guimarães Rosa. Dirige-se ao amigo Pedro Barbosa. Lamenta o excesso de trabalho que nos anos anteriores e ainda agora o impedia de visitar a fazenda de Pindaíbas. Rosa gostaria de estar junto ao poço (piscina natural) do córrego das Pindaíbas, comendo frango com quiabo ou então tutu com linguiça.

Se eu não chorasse, não seria um rosiano apaixonado.

Foto: M.A., Museu Casa de Guimarães Rosa, outubro de 2019