/RESUMO de Raízes do Brasil – Capítulo 5 – O homem cordial

RESUMO de Raízes do Brasil – Capítulo 5 – O homem cordial

AULA 09 – LENDO A HISTÓRIA DO BRASIL – Prof. Marcos Alvito –  27/08/18

 

Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda – trechos importantes

 

Capítulo V: O homem cordial (coloquei alguns conceitos em negrito; entre colchetes estão os subtítulos que o próprio autor deu)

 

[ANTÍGONA E CREONTE]

 

– “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. (…) Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade.” (169)

 

– “Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar profundamente a estrutura da sociedade. (…) Quem compare, por exemplo, o regime de trabalho das velhas corporações e grêmios de artesãos com a ‘escravidão dos salários’ nas usinas modernas tem um elemento precioso para o julgamento da inquietação dos nossos dias. Nas velhas corporações o mestre e seus aprendizes e jornaleiros formavam como uma só família, cujos membros se sujeitam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privações e confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais as suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos” (170)

 

– “A crise que acompanhou a transição do trabalho industrial aqui assinalada pode dar uma ideia pálida das dificuldades que se opõem à abolição da velha ordem familiar por outra, em que as instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituir-se aos laços de afeto e de sangue.” (171)

 

[PEDAGOGIA MODERNA E AS VIRTUDES ANTIFAMILIARES]

 

– Na “pedagogia científica da atualidade”: há uma preparação para que o indivíduo se liberte da família e até para que a criança seja capaz de “desobedecer nos pontos que sejam falíveis as previsões dos pais”. (172)

 

– “Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de familia – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais.” (172-173)

 

– “se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescents arrancados aos seus meios provinciais e rurais de ‘viver por si’, libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades.” (173)

 

[PATRIMONIALISMO]

 

– “No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje.” (175)

 

–  “Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “ patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. “ (175)

 

“No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência dos chamados “ contatos primários” , dos laços de sangue e de coração — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.” (175-176)

 

[O “HOMEM CORDIAL”]

 

– “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “ homem cordial” [Nota 6] . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças.” (176)

 

Nota [6] A expressão é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey. Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que a palavra “ cordial” há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico, se não tivesse sido contrariamente interpretada em obra recente de autoria do sr. Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das “ cordiais saudações” , “ que são fechos de cartas tanto amáveis como agressivas” , e se antepõe à cordialidade assim entendida o “ capital sentimento” dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa “ técnica da bondade” , “ uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora” . Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferença, em verdade fundamental, entre as idéias sustentadas na referida obra e as sugestões que propõe o presente trabalho, cabe dizer que, pela expressão “ cordialidade” , se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falarem “ bondade” ou em “ homem bom ” .Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e  convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos “ grupos primários” , cuja unidade, segundo observa o próprio elaborador do conceito, “ não é somente de harmonia e amor” . A amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, benevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade.” (240-241)

 

[AVERSÃO AOS RITUALISMOS: COMO SE MANIFESTA ELA NA VIDA SOCIAL, NA LINGUAGEM, NOS NEGÓCIOS]

 

– “Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma reverência prolongada ante um superior. Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. E isso é tanto mais específico, quanto se sabe do apego freqüente dos portugueses, tão próximos de nós em tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência. No domínio da lingüística, para citar um exemplo, esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação “ inho” , aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração.” (177-178)

 

– “O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade.” (178)

 

[A RELIGIÃO E A EXALTAÇÃO DOS VALORES CORDIAIS]

 

– “Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos.” (179)

 

– “É o que também ocorreu com o nosso Menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos canônicos do que no de certos  apócrifos, principalmente as diversas redações do Evangelho da Infância. Os que assistiram às festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, conhecem a história do Cristo que desce do altar para sambar com o povo.” (179)

 

– “O que representa semelhante attitude é uma transposição caracaterística para o domínio do religioso desse horror às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro.” (180)

 

– “A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade. Não admira pois, que a nossa República tenha sido feita pelos positivistas, ou agnósticos, e nossa Independência fosse obra de maçons.”  (180-181)