/Roger Chartier e o conceito de cultura popular

Roger Chartier e o conceito de cultura popular

CHARTIER,R.” ‘Cultura popular’: revisitando um conceito historiográfico” In: Estudos Históricos, 16(1995): 179-192

p. 179 Os dois grandes modelos de descrição e interpretação da cultura popular:

  1. “O primeiro, no intuito de abolir toda a forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada.”

  2. “O segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação à cultura dos dominantes.”

p.182 Afinal, além da imposição, é preciso considerar a recepção “que pode ser resistente, matreira ou rebelde”:

“A descrição das normas e das disciplinas, dos textos ou das palavras com os quais a cultura reformada (ou contra-reformada) e absolutista pretendia submeter os povos não significa que estes foram real, total e universalmente submetidos. É preciso, ao contrário, postular que existe um espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção e a prática, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se reformulações e deturpações *. Nem a cultura de massa do nosso tempo, nem a cultura imposta pelos antigos poderes foram capazes de reduzir as identidades singulares ou as práticas enraizadas que lhes resistiam. O que mudou, evidentemente, foi a maneira pela qual essas identidades puderam se enunciar e se afirmar, fazendo uso inclusive dos próprios meios destinados a aniquilá-las. Reconhecer esta mutação incontestável não significa romper as continuidades culturais que atravessam os três séculos da idade moderna, nem tampouco decidir que, após o corte da metade do século XVII, não há mais lugar para gestos e pensamentos diferentes daqueles que os homens da Igreja, os servidores do Estado ou as elites letradas pretendiam inculcar em todos.

p.184 Crítica à “sociologia da distribuição”: hierarquia de classes hierarquia cultural

“É portanto inútil querer identificar a cultura popular a partir da distribuição supostamente específica de certos objetos ou modelos culturais. O que importa, de fato, tanto quanto sua repartição, sempre mais complexa do que parece, é sua apropriação pelos grupos ou indivíduos. Não se pode mais aceitar acriticamente uma sociologia da distribuição que supõe implicitamente que à hierarquia das classes ou grupos corresponde uma hierarquia paralela das produções e dos hábitos culturais. Em toda a sociedade, as formas de apropriação dos textos, dos códigos, dos modelos compartilhados são tão ou mais geradoras de distinção que as práticas próprias de cada grupo social*.”

p.184 Não há uma essência do popular, ele é um tipo de apropriação:

“O ‘popular’ não está contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras. Tal constatação desloca necessariamente o trabalho do historiador, já que o obriga a caracterizar, não conjuntos culturais dados como ‘populares’ em si, mas as modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados.”

p.184 Uma definição de apropriação tal qual entendida pelo autor (diferente de Foucault e da hermenêutica também):

“A apropriação tal como a entendemos visa a elaboração de uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os constroem. Prestar, assim, atenção às condições e aos processos que muito concretamente são portadores das operações de produção de sentido, significa reconhecer, em oposição à antiga história intelectual, que nem a idéia nem as interpretações são desencarnadas, e que, contrariamente ao que colocam os pensamentos universalizantes, as categorias dadas como invariantes, sejam elas fenomenológicas ou filosóficas, devem ser pensadas em função da descontinuidade das trajetórias históricas.”

p.184 Entretanto não se deve esquecer:

“que tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam sendo objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação).”

p.184 “Compreender a ‘cultura popular’ significa, então,

situar neste espaço de en-

p.185 frentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de consumo que, precisamente, qualificam (ou antes desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto.”

Ou seja, como diferencia Michel de Certeau, estratégias e táticas:

“As estratégias supõem a existência de lugares e instituições, produzem objetos, normas e modelos, acumulam e capitalizam. As táticas, desprovidas de lugar próprio e de domínio do tempo, são ‘modos de fazer’ ou, melhor dito, de ‘fazer com’.”

p.185 Formas populares enquanto táticas produtoras de sentido:

“As formas ‘populares’ da cultura, desde as práticas do quotidiano até às formas de consumo cultural, podem ser pensadas como táticas produtoras de sentido, embora de um sentido possivelmente estranho àquele visado pelos produtores: ‘A uma produção racionalizada, expansionista e centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde uma outra [grifo do autor, M.Certeau em A invenção do cotidiano, vol. 1] produção, chamada ‘consumo’. Ela é matreira e dispersa, mas se insinua em todos os lugares, silenciosa e quase invisível, pois não se manifesta através de produtos próprios e sim através de modos de usar [idem] os produtos impostos pela ordem econômica dominante.”

e.g. a leitura, que parece ser passiva e submissa, mas é, na verdade, inventiva e criadora.

p.185 Um exemplo de tipo de leitura: segundo R.Hoggart, na Inglaterra dos anos 50, jornais de massa, canções, anúncios etc eram objeto de uma atenção “oblíqua” ou “distraída” na qual jamais desaparecia a desconfiança e a dúvida; isto é, jamais havia uma adesão completa e/ou permanente ao que fora lido;

A noção de atenção ‘oblíqua’ permite assim entender como a cultura da maioria faz para manter à distância, ou então para se apropriar, inscrevendo ne-

p.186 les sua própria coerência, dos modelos que os poderes ou os grupos dominantes lhe impõem pela autoridade ou pelo mercado. Esta perspectiva contrabalança valiosamente aquelas que acentuam, de uma forma por demais exclusiva [Foucault por exemplo ?], os dispositivos discursivos e institucionais que, numa dada sociedade, visam a disciplinar os corpos e as práticas ou a modelar as condutas e os pensamentos. A mídia moderna não impõe, como se acreditou apressadamente, um condicionamento homogeneizante, destruidor de uma identidade popular, que seria preciso buscar no mundo que perdemos. A vontade de inculcação de modelos culturais nunca anula o espaço próprio da sua recepção, do seu uso e da sua interpretação.”

p.190 O objeto fundamental da história ou da sociologia culturais:

“compreendida como uma história da construção da significação reside na tensão que articula as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades com os constrangimentos, as normas e as convenções que limitam – mais ou menos poderosamente segundo sua posição nas relações de dominação – o que lhes é lícito pensar, enunciar, fazer.

p.190 A resposta à pergunta inicial: “como articular (e não só utilizar de forma alternada) esses dois modelos de inteligibilidade da cultura popular que são,

de um lado, a descrição dos mecanismos que levam os dominados a interiorizar sua própria ilegitimidade cultural e,

de outro lado, o reconhecimento das expressões pelas quais uma cultura dominada ‘consegue organizar, [numa] coerência simbólica cujo princípio lhe é próprio, as experiências da sua condição’ ?

A resposta não é fácil e hesita entre duas alternativas:

operar uma triagem entre as práticas mais submetidas à dominação e aquelas que usam de astúcia com ela ou a ignoram;

ou, então, considerar que cada prática ou discurso ‘popular’ pode ser objeto de duas análises que mostrem, alternadamente, sua autonomia e sua heteronomia.

O caminho é estreito, difícil, instável mas acredito que seja, hoje em dia, o único possível.”