/The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte C

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte C

Marcos Alvito

“A intensa politização do futebol nos novos estados autoritários da Europa não deixou intocadas as democracias do continente. O Ministro do Esporte da França, por exemplo, viu a mobilização do esporte sob o fascismo e comunismo como uma ameaça explícita às democracias liberais e achava que também estas deveriam criar organizações de esporte e lazer. Esta era uma das ambições da nova Frente Popular no governo desde a eleição de maio de 1936. A recessão econômica global estava fazendo danos à sociedade francesa. A sucessão interminável de governos de direita não havia mobilizado os recursos econômicos ou políticos necessários para lidar com a recessão, desemprego e ameaça rampante de guerra; nem haviam sido capazes de conter uma onda crescente de agitação fascista na França. A Frente Popular, nomeada conscientemente da mesma forma que a espanhola, estava unida diante das mesmas ameaças duplas do fascismo internacional e nacional. Depois de quase duas décadas de divisão na esquerda, socialistas, comunistas e sindicatos entram em acordo para elaborar uma lista única de candidatos e um programa político unificado, sendo assim capazes de conquistar a maioria nas eleições. Léon Blum torna-se Primeiro Ministro em junho de 1936.

A França era um vulcão. Nas ruas e espaços públicos das cidades havia celebrações de massa que praticamente se tornavam uma ocupação. Este clima de confiança da classe operária liberou as demandas reprimidas de uma sociedade duramente atingida pelas dificuldades econômicas da década anterior; uma onda de greves e ocupações de fábricas veio em seguida. Reformas extensas do local de trabalho e aumentos de salários foram concedidos pelos patrões aos sindicatos e colocadas no papel nos Acordos Matignon. O próprio governo estava encorajado por estas demonstrações de poder popular, sobretudo o socialista Leo Lagrange, o novo Ministro do Esporte. A criação do ministério era uma medida da Frente Popular demonstrando seu engajamento na criação de uma política de lazer. As questões de infraestrutura esportiva e do esporte popular haviam sido, até então, a responsabilidade de incontáveis e invisíveis burocracias elitistas. Mais do que isso, nenhuma consideração havia sido feita em termos de fornecer aparelhos públicos. A França podia ter recebido dois Jogos Olímpicos, mas havia construído poucos parques municipais esportivos e piscinas.

A Frente Popular durou menos de dois anos; mas no campo do futebol deixou traços indeléveis. A Frente em si era uma boa amostra da industrialização  atrasada e incompleta da França e de sua classe operária fragmentada e desorganizada. A eleição de um governo de esquerda – comprometido com reformas básicas no mercado de trabalho e com o bem-estar social – chegou mais de uma década depois do que ocorreu na Inglaterra e mais tarde ainda do que na Espanha. O futebol francês, como vimos, seguiu esta tendência. Foi o último das nações maiores a aceitar o futebol profissional, o que só fez de maneira completa em 1935, e era predominantemente composto por times de cidades pequenas e não de grandes cidades. Isto finalmente se modificou no final da década de 30, quando emergiram dois clubes de futebol bem sucedidos das suas maiores áreas urbanas: o Racing Club de Paris e o Olympique Marseille. Ao nível do esporte amador e recreativo, a Frente Popular iniciou a tradição da intervenção do Estado francês no esporte, o que continua até hoje. A Frente também foi capaz de construir uma impressionante série de aparelhos esportivos públicos apesar das enormes restrições orçamentárias da época.

Estes tipos de desenvolvimentos domésticos e de inovações foram complementados por uma atitude que recusava deixar que o espetacular fosse propriedade exclusiva das sociedades autoritárias. Em 1937 Paris recebeu a Exposição Internacional; Blum acreditava que ela fosse uma arena na qual ‘a democracia conseguiria desfechar no fascismo um sopro de morte de várias formas’. Todavia, no torneio de futebol jogado para acompanhar a exibição, o Bolonha – time dos fascistas – derrotou o Chelsea. A imprensa italiana proclamou a força do futebol sob o fascismo. Um ano depois a França hospedaria a Copa do Mundo de 1938 e a política do continente estaria ainda mais carregada, com o espetáculo esportivo mais embebido ainda na ameaça da guerra próxima. Não tanto quanto Mussolini em 1934, mas os franceses investiram recursos consideráveis nos estádios do torneio. O Parc des Princes e o Stade Colombes em Paris foram reformados, sendo que o primeiro ganhou uma fachada art déco. Reconstruíram-se estádios em cidades pequenas: Antibes e Havres. E dois novos estádios foram construídos: o Vélodrome em Marselha e o Parc Lescure em Bordéus. Este último é uma resposta em termos de design arquitetônico democrático à grandiosa pomposidade das arenas fascistas e seu futurismo brutal.

Mais uma vez as democracias tinham que enfrentar o fascismo sem os britânicos, que não somente não estariam na Copa do Mundo de 1938 mas cuja noção de uma cultura futebolística de neutralidade política tinha sido colonizada pela política do apaziguamento, da conciliação. O futebol inglês, fazendo as vezes de um pacificador, tinha reaberto relações com a Alemanha em 1930 quando a seleção inglesa disputou seu primeiro jogo do pós-guerra lá. Muito tinha acontecido nos breves cinco anos desde aquele jogo e a decisão da F.A. de retribuir o favor e convidar os alemães a jogar em Londres em dezembro de 1935. Como sempre, o governo britânico não foi informado da decisão pela F.A. Na verdade, o governo só veio a saber da partida e das suas possíveis implicações a partir de uma série de artigos contra o jogo publicados pela imprensa de esquerda e judaica e por protestos de grupos judaicos, os sindicatos e a Sociedade Anti-Nazista.

Os ânimos se exaltaram ainda mais, sobretudo em Londres, quando ficou claro que os alemães pretendiam trazer cerca de 10 mil torcedores com eles de navio e trem. De uma maneira desastrada que demonstrava uma extrema ingenuidade política ou ignorância, possivelmente ambas, a F.A. decidiu jogar a partida em White Hart Lane, estádio do Tottenham Hotspur, um time querido no norte de Londres junto à comunidade judaica. O Daily Worker noticiou que os alemães haviam assassinado um judeu polonês jogador de futebol. A história foi negada pela embaixada alemã, mas se tornou corrente nas ruas do norte de Londres, com os ativistas distribuindo folhetos condenando o crime, o jogo e os alemães. Dizia-se que haveria uma marcha de pelo menos 5 mil pessoas até o estádio no dia do jogo. Os anti-fascistas britânicos superestimavam o sentimento antifascista dos britânicos em geral. Cinco dias antes do jogo houve uma marcha de protesto no Hyde Park com quase 20 mil pessoas, mas no dia do jogo não houve marcha alguma e o estádio lotou. A única pessoa presa foi o valente jovem que escalou o teto da arquibancada central de White Hart Lane e arrancou de lá a bandeira nazista.

A resposta do governo e da maioria da imprensa foi de reafirmar que deviam manter a tradição de separar esporte e política. A visita alemã havia gerado mais debate sobre esporte do que nunca no Ministério das Relações Exteriores. Essa pose de indiferença política era apenas um chavão político. Na verdade, o governo adotou a postura de que um simulacro de normalidade, amizade e desinteresse político seria a política mais efetiva, tornando claras as diferenças entre a Alemanha e a Inglaterra, entre autoritarismo e democracia. Sendo assim, mais de 10 mil torcedores alemães foram recebidos na estação de London Victoria, escoltados por Londres, levados para casas de chá e restaurantes em Leicester Square, com guias falando alemão, muitos dos quais eram inevitavelmente judeus emigrados.

Os alemães retribuíram, convidando a Inglaterra a voltar a Berlim em maio de 1938. Mais uma vez o Ministério das Relações Exteriores só veio a saber uma semana antes. O momento não poderia ser pior: a Alemanha tinha acabado de engolir a Áustria no Anschluss. Na Morávia, alemães tchecos estavam se mobilizando pela volta ao Reich. A Europa parecia mais perto da guerra do que nunca estivera nos últimos 20 anos. A política externa britânica acreditava que as ambições territoriais de Hitler poderiam ser saciadas, enquanto se comprava tempo para um rearmamento em caso de guerra. Dado este contexto, o Ministério das Relações Exteriores tornou-se hiper-sensível às questões de etiqueta e diplomacia em torno do jogo e tornou claro para a FA que ela deveria aceitar o pedido dos alemães de que o time inglês fizesse a saudação nazista para o público alemão presente no estádio. A Inglaterra ganhou o jogo por 6 a 3 mas já havia perdido; 110 mil alemães, inclusive boa parte dos ministros, rugiu seus Heil Hitlers e sua aprovação quando o time britânico levantou suas mãos.

É impossível ler a lista de participantes e ausentes da Copa do Mundo de 1938 e não perceber o conflito sendo armado, o qual já havia começado para Espanha, China e Japão. Os britânicos, embora ainda ausentes, tratavam a competição com o desprezo indiferente com que haviam tratado as duas copas anteriores. A Espanha estava enredada na sua guerra civil. A União Soviética na sua revolução. Os japoneses concentravam-se na guerra na Manchúria. Os austríacos, que haviam se qualificado, agora estavam reduzidos a um distrito administrativo do Grande Reich alemão. Outros ausentes incluíam os uruguaios que estavam sem dinheiro, os argentinos que além de sem dinheiro ainda se ressentiam da decisão da FIFA de não levar o torneio para lá. A Copa de 1938 acabou sendo a mais eurocêntrica de todas, com somente três equipes não-européias: os brasileiros, que surpreenderam os europeus com seu progresso; os cubanos, que vieram da primeira e última vez quando os mexicanos desistiram; e, substituindo os japoneses, uma seleção das Índias Holandesas.

A seleção italiana tomou o trem para Marselha e foi recebida na estação por um comitê de cerca de 3 mil ativistas anti-fascistas. A multidão queria alcançar os jogadores, sendo impedida pela polícia montada armada de cassetetes distribuindo pancadas na cabeça entre os exilados italianos e comunistas franceses que tinham vindo se manifestar. A atmosfera tinha sido incendiada pelo discurso mais recente de Mussolini que falava do vigor da raça e da criação de um espírito bélico a partir do esporte. O jogo de abertura da Itália foi disputado em uma atmosfera política altamente carregada. Dez mil manifestantes anti-fascistas vieram ao Stade Vélodrome. Quando o time italiano levantou suas mãos na saudação fascista durante o hino nacional, foi só vaia, xingamento e choro que se ouviu.

Nas quartas-de-final a temperatura política atingiu seu auge quando a seleção francesa teve que enfrentar a Itália em Paris. Ambas jogavam de azul, sendo assim tiveram que tirar na sorte quem poderia usar seu uniforme principal. Os italianos perderam e em situações semelhantes haviam jogado de branco. Mas uma mensagem direta e clara vinda de Roma mandou que eles jogassem de preto, na primeira e única vez que a Itália fez isso. A despeito de todas as conotações política do encontro a Itália era bem melhor e venceu. Na semifinal a Itália bateu o Brasil em Marselha numa atmosfera que o La Nazionedescreveu como ‘manifestadamente hostil’ e que se repetiu na vitória de 4 a 2 sobre a Hungria na final no Stade Colombes. O time, pouco festejado em Paris, retornou a Roma para uma audiência pessoal com Il Duce.

O final de 1938 foi um momento de decepção. Os britânicos perceberam que a sua política não estava dando certo e depois da ocupação de Praga em 1939 pelos alemães o futebol britânico começou a cancelar partidas contra times alemães. Apesar disso, os britânicos ainda cumpriram um compromisso de jogar contra a Itália em maio de 1939. E novamente a seleção inglesa fez a saudação fascista para o público presente ao estádio San Siro.

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