/Wisnik, primeiro tempo: o futebol como linguagem (tabelinha com Pasolini)

Wisnik, primeiro tempo: o futebol como linguagem (tabelinha com Pasolini)

 

Wisnik, primeiro tempo: o futebol como linguagem (tabelinha com Pasolini)

Marcos Alvito

José Miguel Wisnik é um típico camisa dez. Além da categoria e da visão de jogo, sabe jogar muito bem em todas as posições. Professor de literatura brasileira na USP, tem uma obra multifacetada e talentos em várias áreas. É músico, compositor popular e erudito, autor de obras sobre música, literatura e, finalmente, sobre futebol, com seu magnífico Veneno Remédio: o futebol e o Brasil. Mais do que atuar em diversos campos, Wisnik escapa da burrificação voluntária da hiper-especialização para circular à vontade entre os saberes. Psicanálise, literatura, sociologia, história, música, são entrelaçadas em tabelinhas inesperadas e geniais: Garrincha e Machado de Assis, por exemplo. Seu livro é uma ousada interpretação do Brasil a partir do futebol. Mais do que provar uma tese, Veneno Remédio faz pensar. Devido à riqueza de questões, conceitos e insights geniais contidos na obra, vamos dedicar dois artigos a ela. Neste primeiro tempo, trabalharemos as concepções mais gerais de Wisnik acerca do futebol e na semana que vem, a interpretação do Brasil a partir do futebol.

O pontapé inicial do livro consiste numa tabelinha de Wisnik com o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, um apaixonado pelo futebol e sua capacidade de estar impregnado na vida e testemunhar as relações humanas. Para Pasolini, de acordo com Wisnik, este esporte:

“era para ele o terreno em que se dava ainda o grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito, um largo espectro da vida humana (…) uma zona de contatos lúdicos, primária e refinada, física e metafísica, que desafia e desencadeia o desnudamento da existência autêntica.”

O grande passe do italiano para Wisnik será a ideia do futebol enquanto uma linguagem. Onde estariam presentes as figuras centrais da poesia e da prosa. Em 1971, escrevendo no ano seguinte à conquista do tri pela inesquecível seleção brasileira de Pelé, Gerson, Jairzinho e companhia, Pasolini identificava duas formas de se expressar através da linguagem futebolística. À prosa, estilo adotado majoritariamente na Europa, equivaleria uma “vocação linear e finalista do futebol (ênfase defensiva, passes triangulados, contra-ataque, cruzamento e finalização)”. A poesia, por sua vez, seria marcada pela “irrupção de eventos não-lineares e imprevisíveis (criação de espaços vazios, corta-luzes, autonomia dos dribles, motivação atacante congênita)”.

A distinção feita por Pasolini não era hierárquica nem absoluta. A ‘poesia’ futebolística tanto pode ser “imprevista, fulgurante e eficaz” quanto “firula retórica sem alvo”. Não haveria como jogar futebol sem fazer também o chamado “feijão com arroz”. E a prosa, por sua vez, embora possa ser “burocrática e anódina”, por vezes é “bela, íntegra, articulada e fluente”.

Wisnik não desperdiça o passe e leva a bola da interpretação mais adiante, elaborando a sua tese central: a “narratividade aberta” enquanto característica estrutural do futebol. O que seria isso? O conceito pode ser melhor entendido a partir da comparação que ele faz entre o futebol e outros esportes, como o basquete, o volei, ou o futebol americano. Estes seriam mais “contábeis”, ou seja, neles o placar é capaz de contar a história da partida porque os movimentos, as jogadas, vão sendo traduzidas em pontos ou ao menos numa conquista de território que também é mensurável (como o ganho de jardas no futebol americano). O futebol, por sua vez, seria singular neste aspecto:

“No futebol, temos uma sequência contínua e inumerável de alternativas em que o avanço numérico é um acontecimento entre outros, que se destaca de um magma de possibilidades não cumpridas, de um vai-e-vem de lances falhados ou belos em si.”

Em uma partida de futebol, o placar muitas vezes não explica nada. Ao contrário, o placar numerico é que tem que ser explicado através de uma narrativa, a famosa “história do jogo” (da partida). Mas o caso é que são muitas as narrativas possíveis até mesmo para um zero a zero. Essa “margem narrativa”, segundo Wisnik: “admite o épico, o dramático, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico.”

“narratividade aberta” do futebol, sua infinita capacidade de gerar interpretações e, consequentemente, debates, explicaria ao mesmo tempo a sua universalidade e a sua capacidade de apropriação local por culturas específicas. Ele comportaria múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo.” Por um lado, um jogo com regras simples e universais, mas contendo uma “diversidade interna” tão rica que é “capaz de absorver e expressar culturas”. Residiria aí a sua capacidade de ser adotado em todas as partes do planeta, independentemente de religião, sistema politico, grau de desenvolvimento social ou econômico. O futebol seria plastico por conta da sua estrutura mais aberta, digamos assim.

Esta estrutura “aberta” do futebol está, todavia, posta em xeque nos dias de hoje. É ameaçada pela sua espetacularização. Por sua transformação em mais um show televisivo. E ligado a isso, de forma brutal e ostensiva, por sua utilização como instrumento da máquina consumista necessária ao “bom” funcionamento do sistema capitalista, já que: o alcance global, o poder de apelo e a adesão magnética fazem do futebol um veículo ideal da mercadoria em seu estado de irradiação onipresente.” Wisnik não usa a expressão, mas a sua descrição bate ponto a ponto naquilo que na Inglaterra costuma ser chamado de “a colonização do futebol pelo capital”:

“além de o marketing ter invadido campo, bola, frente e dorso das camisas, calções, chuteiras, placas em torno do gramado, uniformes do juiz e dos bandeirinhas (agora designados pelo nome tecnocratizado de ‘auxiliares técnicos’), uma elite de jogadores é chamada a se converter em suporte privilegiado de marcas publicitárias, emergindo como ícones de um mercado mundializado envolvendo interesses bilionários – processo que já estava dado, em suas linhas gerais, na Copa de 1998.”

Mas um craque como Wisnik sabe bater na bola com efeito e é capaz de uma interpretação sutil e eficiente como um drible. Novamente invocando Pasolini, desta vez em uma triangulação com o historidor britânico Eric Hobsbawm, ele acredita que o futebol, pensado de dentro, seria um espaço também de resistência. Pois ao mesmo tempo em que seria “alienante e manipulado”, manteria a capacidade de ser “autêntico, memorável, apaixonante e inesperado.”

O futebol, língua geral mundial, seria ao mesmo tempo penetrado e resistente à lógica capitalista. Um bom exemplo estaria na formação dos chamados times galácticos oriundos da força do dinheiro, mas incapazes muitas vezes de traduzir uma superioridade existente no (e pelo) papel em vitórias e títulos. Neles a presença e a potência do econômico é ao mesmo tempo afirmada e negada.

É também síntese e paradoxo da globalização, pois ao mesmo tempo em que invade todo o planeta e vê certas competições adquirirem um estatuto global, o futebol vive basicamente de rivalidades localmente enraizadas. Sendo assim ele seria um verdadeiro nó das contradições do mundo contemporâneo. Sua complexidade atuaria contra o embrutecimento e a simplificação:

“A complexidade do jogo de futebol, quando se constitui num modelo de liberação e domínio das paixões, de postulação e superação da violência, de reconhecimento mesmo que a contragosto das diferenças, de exercício múltiplo da inteligência, exposta à opacidade da força bruta mas chamando a ‘presença de espírito’ no corpo, além da própria exposição aos poderes do acaso, age contra as formas de manipulação que o utilizam e o reduzem, contra as formas de embrutecimento que o minam por dentro, assim como contra as formas de simplificação que o explicam apenas pelos fatores externos.”

A interpretação proposta por Wisnik, sem dúvida, poderia ser relacionada às que viemos abordando até agora: à questão do controle das emoções e da violência (Elias), ao seu aspecto de arte (Geertz) e, por fim mas não menos importante, a sua capacidade de expressar as contradições do mundo contemporâneo (Bromberger). Sem espaço para fazer todas estas pontes, prefiro concluir com as palavras do próprio Wisnik, resumindo tudo:

“o ponto principal que interessa aqui é que o futebol, admitindo na base essa gama ambígua de contatos e choques, regulados e incontroláveis, da bola com o campo e de jogadores com jogadores, supondo acaso, perícia, imponderabilidade, elegância, arte, astúcia, insídia e violência, põe em cena o teatro humano em todo o seu espectro, da finura à grossura extremas.”