(do livro Amores mínimos)
Ela estava no gramado, aguando as plantas, em frente a casa que dava diretamente na estrada, por onde eu vinha. O sol da tarde figurava em seu rosto como se nele encontrasse a moldura perfeita, e a euforia dos pássaros, pressentindo a noite iminente, me bicava a consciência. Seria como das outras vezes, eu apenas passaria por ali e a fitaria e, enquanto estivesse sob a minha mira, ela me ocuparia toda a mente como uma pedra cortante, mas no momento e que ficasse para trás, substituída nos meus olhos pela fileira de eucaliptos, eis que o desejo de me enfiar, pleno, na sua sombra cairia como uma árvore – tão afiada é a resignação quanto um machado! Mas a trava, que em mim vivia fechada, de repente se abriu, minhas pernas me moveram para outro rumo, e, se antes eu a via pelos vãos de uma cerca de arame farpado, agora a via entre o vazio dos moirões, à espera de alguém que os ultrapassasse. Se calculava errado ou não, só me restava avançar. Ao contrário de Átila, e longe de ser uno, já me sentia mesmo dividido entre o que eu fora a vida toda e o passo que dava àquela hora; me cumpria então ser o homem a pisar no seu gramado, e eu floresceria a seus pés, embora não soubesse nada dela senão que a via todas as tardes, ao voltar da olaria, sempre ali, como um sinal de que a máquina do mundo girava suas pás, indiferente à minha existência. Quando me aproximei, a relva que ela regara me molhou a barra da calça, o verde ondulou em meus olhos, e, tendo-a, tão fresca, ao alcance dos lábios, eu nada lhe disse, apenas a olhei como se olha uma vida, inteira, e, seguindo para a porta da casa que me chamava para cruzá-la, ouvi o rumor de suas sandálias atrás de mim, sabendo que se movia com o vento dos meus moinhos. Como um ulisses, meu corpo sabia mais daquela casa do que minha mente, e fui me levando pela escada à planta de cima, e encontrei o quarto eleito, onde o sol se infiltrava pela janela com displicência. Deitei na cama e a esperei e, se ela entrou logo em seguida, pela primeira e única vez, sei que nela entrei para sempre.
Ele vinha pela estrada de terra, a mesma que margeia o gramado de casa e segue pela linha de eucaliptos, e apesar de ignorar tudo de sua vida, eu sabia, como todo dia nasce do ventre de uma noite, que ele vinha da olaria. Não porque tivesse as mãos e o rosto sujos, mas porque eu podia ver, a cada tarde, quando por aqui ele passava, que tinha barro no jeito de se mover, e era essa humanidade que me atraía. Eu molhava o gramado, e não estranhei a sua mudança de passo, era como uma planta que espera a sua água – e eis que, de repente, a cortina de chuva se deslocava na minha direção! Ao redor, o silêncio se escoava, em gotas, engolido pelo canto dos pássaros, àquela hora de volta ao ninho, excitados pela escuridão que em breve se instalaria. Continuei a rega, fingindo que não percebera sua alteração de rota, mas, como uma árvore à brisa, apesar do tronco rijo e inerte, todo meu ser se agitava, o que era galho em mim ondulava, e subia e descia à superfície o meu desejo mudo de sereia. Então ele saiu da estrada e se acercou de minha relva úmida, e eu pude captar o que a terra sentia a cada um dos seus passos, a sua coragem resoluta, porque se o instante era de areia movediça para nós dois, foi ele quem o pisou primeiro, e me pareceu, ou foi meu olhar que depois ele atravessou seguindo para a porta de casa, que o sol ainda vivo e rastejante tentava morder seus pés no calcanhar, mas como a sombra de Aquiles a barra da calça o protegia. Sem saber se havia alguém comigo, ou lá dentro, e, antes de subir as escadas à minha frente e deitar-se na cama, parou e me olhou de forma tão intensa com sua vista verde, esculpindo-me de uma vez, como se tivesse a vida toda se habituado à minha argila. Fui no seu encalço, as sandálias seguindo o mapa que ele desenhava no meu próprio terreno. E quando me deitei sobre ele, saí de mim, totalmente, como quem sai de dentro da pele, e atirei-me de lado feito uma roupa, para nunca mais deixar de ser a outra em que me transformei.