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Histórias do Alvito – MANUAL DA DOR DE COTOVELO

Histórias do Alvito
MANUAL DA DOR DE COTOVELO
Emílio Alvito, meu avô materno, era português. Operário especializado da indústria naval, vivia somente dos seus parcos rendimentos. Quando o conheci ele já estava quase com oitenta anos. Mesmo assim, quando eu e mamãe chegávamos na sua casa ele já estava de terno, gravata, bem alinhados, e o chapéu na mão pronto para sair e nos mostrar Lisboa com a animação de um garoto.
Vi meu avó mais algumas vezes, e ele sempre me impressionou pelo bom humor e pela alegria de viver. Mas a principal herança que ele me deixou foi uma frase, que ouço na mente com sotaque lusitano:
“Viver todo mundo vive, saber viver é que são elas!”
A frase de vovô me trouxe uma lição. Para tudo, na vida, se faz necessária uma arte, inclusive para a dor de cotovelo. Você pode tentar fugir de uma desilusão amorosa como gostaria de escapar do imposto de renda, mas será bem pior se você fizer isso.
Da mesma forma que no luto, o melhor é abraçar a dor e chorar no ombro da malvada. Com classe, é claro, pois há um corpus quase infinito acerca do assunto. Eu poderia citar gregos e troianos, começando por Sófocles, que já alertava: “Sofrer para compreender”.
Mas vou ficar somente com as músicas de Chico Buarque… Aliás, lembremos que até uma ou duas gerações atrás todas as mulheres eram apaixonadas por Chico Buarque até prova em contrário. Houve até marido obrigado a assinar contrato matrimonial com a cláusula restritiva:
“Serei fiel, totalmente fiel, mas se o Chico Buarque aparecer…”
Bem, mas voltando à dor de cotovelo, Chico impera:
“depois de te perder,
te encontro com certeza,
talvez no tempo da delicadeza” (Todo sentimento)
Pois é, sofrer com delicadeza é absolutamente necessário. Sem raiva, sem revolta, aceitando o fato de que o amor acontece ou não, desacontece e até, fenômeno raro, acontece novamente e algumas vezes tem mais temporadas do que certas séries americanas. Usando a sabedoria generosa de minha irmã: “No amor todo mundo tem razão”.
A dor do cotovelo é um bom filtro, pelo qual não passam os falsos amores, aqueles a que somos levados pelo desespero ou impressões equivocadas e ilusões variadas. Pois a mulher realmente bonita vai ficando mais bonita a cada dia enquanto muita bonitona desvaloriza com a convivência mais do que o peso argentino. E as “feias”? Minha mãe dizia: Quem ama o feio, bonito lhe parece. De qualquer forma, há que não colocar a culpa no outro. Nem tampouco clamar contra o grande amor:
Hoje eu tenho apenas
Uma pedra no meu peito
Exijo respeito
Não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira (Grande amor)
A mentira maior, e o final ambíguo (mentira!) dá conta disso, é que ninguém desiste do grande amor. Mesmo que sejamos quase levados a isso depois de uma dor de cotovelo que irradia e toma conta da alma. Eu era um garoto de vinte e dois anos, a morena tinha uns dezenove ou vinte. Foi uma das minhas primeiras namoradas e a paixão mais arrebatadora e elétrica. No caso dessa morena, eu é que fiquei com os olhos rasos d’água. Ela me traiu da forma mais chula, nefasta e lancinante. Menino que era, durante anos transferi o horror para toda e qualquer morena. Trauma. Uma dor de cotovelo que eu não soube viver.
Naquela época eu vivia cantando “Faltando um pedaço”, de Djavan:
“o amor é um grande laço,
um passo para uma armadilha”
Ainda não sabia que não deveria me arrepender de um amor que era belo e verdadeiro, mesmo que tenha sido escorraçado feito cão sarnento. Chico Buarque, esse gênio, chega a dizer que esses amores vagam pelo espaço, são imorredouros:
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar (Futuros amantes)
Muitos anos e muitas dores de cotovelo depois, minha reação ao fim de um amor que era toda a minha vida foi completamente diferente. E olha que ela também era morena. Não sou nenhum Chico Buarque, mas a saída foi fazer um sambinha:
Hoje, meu samba,
tem nuvem de chuva
lambendo a minha dor
Hoje, meu samba,
caminha me mostrando
aonde é que vou
Meu samba,
hoje é feito de tristeza
mas ele tem a nobreza
De viver um grande amor
Meu samba é para ti
minha querida
uma flor na despedida
daquele que te amou (Nobreza)
Afinal, é mesmo uma questão de nobreza de espírito. Claro que vocês vão me perguntar:
— Alvito, você está com dor de cotovelo?
Quem dera!
Lembro que Romildo, um dos compositores de Conto de areia, estrondoso sucesso na voz de Clara Nunes, disse que para fazer samba o sofrimento era necessário. Mas não qualquer sofrimento, ele explicou, só o “sofrimento satisfatório”. Afinal é muito melhor sofrer por amor do que por dor de dente. Embora doa bem mais…
EM MAIO: Lendo Cem anos de solidão (inscrições abertas)