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Histórias do Alvito – OUTRA HISTÓRIA QUE NÃO É MINHA

Histórias do Alvito

OUTRA HISTÓRIA QUE NÃO É MINHA

A conversa me fez lembrar uma música de Jorge Ben, da época em que ele se chamava assim. Já chego lá.

Não me senti morador de Blumenau enquanto não tive um barbeiro preferido, para o mundo masculino isso é uma âncora. Aliás, já deve haver 17 teses de doutorado sobre os salões de barbeiro e se não há a turma tá bobeando, porque eles merecem. Além do estádio de futebol, ali é talvez o único lugar em que homens confraternizam com desconhecidos, em termos relativos, é claro. Mas as conversas se dão em voz alta, uns escutando as conversas dos outros. Afinal ali não entram mulheres e os homens se sentem à vontade.

Por isso, desta vez não vou usar pseudônimo, porque essa história me foi contada em alto e bom som, para todos que quisessem ouvir. Há meses que André é meu barbeiro. A escolha foi fácil. Ele é um excelente profissional capaz de fazer milagres com o que me resta de cabeleira. Além disso, André é de esquerda. Fui numa podóloga e só quando ela estava com meu pé numa mão e um alicate afiado na outra é que descobri que ela era bolsonarista… Não foi uma sensação agradável. André é inteligente, a conversa dele é boa, sempre rimos bastante.

Um sujeito alto sem ser gigante, André, com seus trinta e nove anos é um homem bonito, embora esteja um pouco gordinho. Mais jovem, se somarmos a simpatia e a inteligência, devia fazer um estrago. André foi criado no interior da Bahia e depois em Goiás. André é negro (assim se define) e usa aquelas tranças afro bem coladas à cabeça.

Estavamos conversando sobre nomes e apelidos e aí ele me contou histórias de arrepiar. Disse que em todo os lugares que viveu sempre lhe deram apelidos. Mussum não pegou. Em um conjunto em que era o único negro foi chamado ironicamente de “Alemão”, mas ele ressalta que era tratado com respeito e carinho. Em outro lugar seu apelido era Azeitona, preta, é lógico. Nem o diretor da escola sabia o seu nome depois de anos. Mais sorte teve quando o chamaram de Obama, mesmo que o direito dele ao seu nome continuasse negado.

Em uma cidade do interior de Goiás experimentou a pior forma de racismo. Lá ele não tinha nome nem apelido, o chamavam simplesmente de preto: — Ô, preto, vem cá!

Mas a história mais assustadora vem agora. Quando ele tinha 14 anos, havia uma menina branca muito formosa para a qual ele olhou e pensou: — Nem vou falar com ela, vou me poupar a humilhação. Mas acontece que a mocinha gostou dele, saiu com ele uma vez e lhe pediu que a levasse a um baile.

Ele apareceu com sua mobilette (consultem o Google) e, bom moço que era, decidiu bater na porta e se apresentar ao pai da moça, para dizer que ele a levaria ao baile, que estava se responsabilizando. Toca na porta, o pai atende, olha para ele de cima em baixo e grita para a filha que ainda estava dentro de casa:

— Foi essa coisa preta que você trouxe?

André ainda pensou que fosse brincadeira, mesmo de mau gosto, mas teve certeza quando o pai acrescentou:

— Quando você trouxer ela, pode deixar na esquina, não precisa vir até aqui em casa.

Já se imaginaram na pele de um garoto de 14 anos quando vai cheio de alegria buscar sua namoradinha e é chamado de “coisa preta” ?

Depois ela explicou que o pai pensou que André fosse nome de branco.

André e a moça namoraram um tempo, mas, como ele me disse, perdeu a graça.

André é evangélico sem fanatismo, se aproximou da religião através da música, pois toca guitarra no conjunto da igreja desde jovem. É um sujeito porreta que te olha nos olhos e está sempre de cabeça erguida mas sem arrogância.

Hoje, a mulher dele, a mãe do filho dele e que está esperando o segundo filho dele, é loura. Eles estão juntos há vinte anos. Certa vez, quando cortava o cabelo de um militante do movimento negro de Blumenau, o rapaz viu a foto da mulher do André no celular e perguntou quem era. Quando André respondeu que era a sua mulher, o outro condenou com veemência:

— Como é que você pode casar com uma branca? Elas são as opressoras do nosso povo.

Que nem a ostra, que fica entre o mar e a pedra, André toma pancada dos dois lados.

O que eu poderia dizer? Falei que me lembrava da música de Jorge Ben (Take it easy, my brother Charles)

Depois que o primeiro homem
Maravilhosamente pisou na lua
Eu me senti com direitos, com princípios
E dignidade
De me libertar

Só que aqui era o contrário, eu me sentia envergonhado do gênero humano: o mundo literalmente caminhando para o abismo e a turma ainda preocupada com a cor da pele…

Ainda bem que o nome André vem de andrea, coragem em grego.

EM MAIO: LENDO Cem anos de solidão