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Histórias do Alvito – CADA UM TOCA O PANDEIRO DO JEITO QUE SABE

Histórias do Alvito
CADA UM TOCA O PANDEIRO DO JEITO QUE SABE
Muito tempo atrás, durante meses, fiquei tentando tocar pandeiro. Até que consegui finalmente encaixar a batida certa. Uma namorada, que provavelmente tinha se refugiado no chuveiro para escapar do meu desacerto, gritou debaixo d’água, mais aliviada do que feliz: — Entrou no ritmo!Um dia, feliz da vida, emprestei o pandeiro a um amigo e ele, depois de 30 segundos de instruções minhas saiu tocando como se fosse componente veterano do Fundo de Quintal. Em uma semana ele estava fazendo coisas com o instrumento que até hoje não consigo fazer.

Calma, queridos, a crônica de hoje não é sobre a inveja e sim sobre a questão da escrita. Ela também é uma vocação. Quem não é escritor até pode escrever e, com o tempo, melhorar um pouquinho. Mas o escritor verdadeiro, embora se aperfeiçoe, merece a frase “quem é bom já nasce feito”. E mais, o escritor verdadeiro não escreve porque quer, ele precisa escrever.

Não é o meu caso. Eu escrevo porque gosto, embora saiba não ser escritor. A coisa que não posso deixar de fazer é dar aula. Adoro estudar, aprecio escrever, mas a sala de aula é o pandeiro que sei tocar. Apesar disso, escrevi umas coisinhas e vou falar um pouco delas, não do seu conteúdo, mas do que representaram para mim.

Respondo a uma pergunta do meu amigo Martin. Ele reparou que eu não menciono meus livros, teve até a impressão de que eu não lhes dava maior importância. Não é exatamente o caso, tanto que vou dizer algo sobre eles.

Era professor de História antiga e escrevi um pequeno livro, muito básico: A guerra na Grécia antiga. Ele nasceu do fato de que fui convidado a dar um curso no Museu Histórico Nacional, ou seja, é um livro nascido de aulas. Mas também não teria ocorrido sem o empurrão dado por meu grande mestre Ciro Cardoso, um homem cultíssimo mas que gostava de soltar um provérbio de vez em quando. Para me convencer a escrever e publicar ele decretou: — Para aprender a nadar é preciso cair na água. Um colega de departamento da universidade uma vez me deu a alegria de saber que o livro estava sendo usado por estudantes no Pará. Para mim, a maior alegria, além de publicar meu primeiro livro, esteve em poder dedicá-lo a meus pais e à minha irmã.

Depois eu organizei um livro com o prof. Gilberto Velho proveniente de um ciclo de palestras e debates sobre o tema Cidadania e violência. Além de debater vários aspectos do fenômeno, em um momento em que a sociedade mais se preocupava com o tema, consegui convencer o organizador a que a transcrição dos debates também constasse da obra. Os debates foram riquíssimos, com intensa participação de pessoas da chamada sociedade civil. Inesquecível, para mim foi poder falar pela primeira vez da minha pesquisa de doutorado e publicar um artigo sobre ela: “A honra de Acari”.

Em seguida, veio outro livro co-organizado por mim, desta vez com Alba Zaluar. Eu achava um absurdo que os cem anos da favela não merecessem uma reflexão coletiva. Mesmo que o livro tenha saído um ano depois, Um século de favela cumpriu bem o papel de reacender o debate acerca do tema. Publiquei o meu segundo artigo sobre Acari, mas, desta vez, o mais significativo foi que o livro continha poemas deste intelectual sem diploma chamado Deley de Acari.

Até que finalmente saiu As cores de Acari, uma versão da tese sem alguns excessos do tipo 80 páginas da etnografia de um só culto evangélico. A alegria aqui foi enorme. Primeiro por ser o trabalho mais corajoso e difícil que eu já fizera, abandonando 180 páginas de uma tese sobre as mulheres de Atenas e Esparta para me lançar, etnógrafo principiante, ao mundo de uma favela, como todas, muito peculiar. Mais do que isso, o júbilo maior foi poder retribuir, na forma de livro e da festa de lançamento, o acolhimento, o carinho e os ensinamentos dos acarianos. Foi meu último livro acadêmico.

Histórias do samba veio depois de problemas de saúde, mas não foi escrito somente para espantar a tristeza. Na verdade, feito uma Scherazade tropical de gênero trocado, eu prometi escrever cem histórias do samba a uma cabrocha de Copacabana no intuito mais do que declarado de conquistar seu coração. Deu e não deu certo, mas valeu demais a pena, porque escrevi meu primeiro livro sem notas de pé de página. Tem até uma bibliografia, por honestidade intelectual, mas eu me pus simplesmente a contar os causos do mundo do samba. E este me deu uma felicidade inesperada: um garoto de 16 anos me escreveu dizendo ter sido o primeiro livro que ele leu na vida. Ele merecia coisa melhor…

A rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra foi fruto de uma pesquisa muito prazerosa. Os ingleses, quando eu contava o que estava fazendo, me perguntavam: — Você não está precisando de um auxiliar ? Aqui eu mesclei uma parte de pesquisa histórica sobre a história do futebol com a pesquisa etnográfica proveniente das minhas andanças por estádios, convivendo com torcedores e policiais. Acabou sendo também, para mim, o registro do que fiz nesse ano tão diferente da minha vida.

Nossa, vocês já devem estar cansados, se é que não foram embora. Falta pouco, aguentem firme. Agora vou falar de três não publicados.

Um deles é imperdoável. Os sete segredos de Flora é uma novela romântica e trágica da pior qualidade. Só não queimo porque tem alguns traços autobiográficos que eu gostaria de recordar quando a memória começar a falhar.

O que eu gostaria de ver publicado mas duvido que o seja é um livro em que resumo e comento, inclusive fornecendo o vocabulário, cada um dos parágrafos de Grande sertão: veredas. É fruto de um trabalho de anos, mas uma experiente agente literária me disse que é grande demais o que torna a publicação impossível.

O menor livro que escrevi até hoje também espera publicação. Se chama 12 pedacinhos da Grécia para crianças, em que tentei apresentar doze mitos gregos de uma maneira bem informal e divertida, voltada para o público infanto-juvenil.

E reza a lenda que escrevi um livro sobre Machado de Assis mas esse eu guardo a sete chaves…

Nada disso tem real importância.

Jorge Luís Borges, vejam só, dizia que se orgulhava muito mais dos livros que havia lido do que daqueles que ele havia escrito.

EM MAIO: LENDO Cem anos de solidão