DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 1:
“SERTÃO: É DENTRO DA GENTE” (Rio – Andrequicé)
Grande sertão: veredas é um livro feito de viagens, ou de travessias, como prefere dizer o velho fazendeiro que narra a história. Ele sabe que ao se atravessar um rio nunca se chega no ponto planejado da outra margem. Sem falar que a canoa pode virar e afundar, “viver é negócio muito perigoso”. Mas “o mais importante e bonito, do mundo” é que as pessoas “vão sempre mudando”, afirma o homem que tem rio no nome, símbolo maior da eterna transformação desde Heráclito. Creio ser relevante assinalar aqui que uma das filhas de Guimarães Rosa, Vilma, afirma em seu livro Relembramentos que o pai foi batizado com água de rio, mais especificamente o Urucuia, que Riobaldo chama de “Meu rio de amor”.
De fato, Riobaldo, teve sua vida marcada pelos rios e sua travessia. A primeira e mais importante, foi guiada pelo Menino Diadorim. Ele tira Riobaldo da placidez (e pasmaceira) do De Janeiro, nome que remete ao início, para as águas turvas e perigosas do grande rio, do São Francisco, explicando ao garoto tímido e assustado que “carece de ter coragem”. Depois virá a longa travessia de sua vida como jagunço ao lado de Diadorim, seu “amor de ouro”, até o trágico fim. Irá se casar com Otacília, seu “amor de prata” e se estabelecer como dono de terras cercado de jagunços a protegê-lo. Mas antes de escolher a imobilidade próspera como modo de vida, Riobaldo sai, já despido do papel de jagunço, para mais uma travessia, pois “tinha outra andada a cumprir”. Parte, com uma tira de pano preto no braço, em busca de alguém que soubesse alguma coisa da história de Diadorim, nada encontrando. Ou melhor, apenas o registro do batistério de Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins na matriz de Itacambira, em um 11 de setembro.
Restava agora mais uma travessia, antes da travessia derradeira comum a todos nós. Restava viajar para dentro de si mesmo. Agora que dispõe de tempo, podendo ficar de “range rede”, Riobaldo refaz sem cessar suas travessias, pensando no que significaram. A chegada de um doutor, que por algum motivo “tenciona devassar a raso este mar de territórios”, dá ao ancião reflexivo a oportunidade de mais uma vez atravessar o sertão, agora em sua memória, montado em sua imaginação, para reviver e melhor pensar sobre o que lhe havia acontecido. Pois ele mesmo sabe que “sertão: é dentro da gente.”
Dizem que o Dom Quixote de Cervantes foi o primeiro livro de road fiction. Como bom maluco beleza, o Quixote, montado no Rocinante, viajava para dentro de si mesmo e de suas obsessões. Enquanto Instagram e Facebook transbordam de fotos de Paris, Londres e Nova York, eu e meu burrinho pedrês, encarnado em um Ford Ka 2016, estavamos retornando às terras de Riobaldo, Diadorim e Zé Bebelo, para não falar no Hermógenes.
Havia esperado três anos por aquela viagem, um período difícil, turbulento, áspero. Mas lembrava que “o sertão é uma espera enorme” e com uma paciência de sertanejo fui aos poucos criando condições de retornar ao Norte de Minas. Dois queridos amigos, com os quais eu fizera a primeira viagem ao sertão, desta vez estavam presos por afazeres inescapáveis. Eu iria sozinho, ou melhor, acompanhado dos meus fantasmas. Como diz Riobaldo: “Melhor, para a ideia se bem abrir é viajar em trem-de-ferro.”
Adoro estrada, adoro o movimento, a mudança contínua da paisagem, a surpresa na forma de um casal de araras que sobrevoa o carro ou de um rio ainda vivo, suas belas águas verdes correndo incessantes. Meu Burrinho Pedrês foi valente, teve que conviver com Scanias-jumentonas e Cavalões-utilitários em trechos de estrada em que toda ultrapassagem era uma roleta-russa.
No primeiro dia, percorremos 710 quilômetros, do Rio até Andrequicé, das seis da manhã até as quatro e meia da tarde. A maior alegria do trajeto, principalmente depois que começa o sertão, é o azul límpido e cristalino do céu e os ipês amarelos, explodindo de luz . Infelizmente, muitas vezes há “florestas” de eucalipto dos dois lados da estrada. Mas vez por outra se vê a “belimbeleza” dos buritis. Mesmo da estrada dá para perceber porque “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos”. A sensação de enormidade, de imensidão, ainda está lá. Mas agora parece que toda a terra tem dono, tem suas cercas e porteiras.
Andrequicé? Este povoado é citado apenas uma vez quando Riobaldo fala da possibilidade do Diabo ter aparecido por lá e dito que seria capaz de ir até a fazenda de Riobaldo em apenas vinte minutos, contornando o rio pelas cabeceiras, um percurso que a cavalo demorava um dia e meio.
A importância de Andrequicé para a obra é enorme, todavia. Lá viveu o famoso Manuel Nardy, conhecido como Manuelzão, um vaqueiro extremamente habilidoso que havia saído de sua terra natal por conta de uma desilusão amorosa, passando a vagar pelo sertão. Quis até mesmo se juntar ao bando de Lampião, que morre antes de Manuelzão encontrá-lo. Por fim se estabeleceu em Andrequicé, onde deitou raízes e viveu seus últimos dias.
Manuelzão estava na comitiva que atravessou o sertão para levar uma boiada em 1952. Dela tomou parte Guimarães Rosa, sempre com o caderninho pendurado ao pescoço, atazanando os vaqueiros, sobretudo Manuelzão, com perguntas incessantes sobre fauna, flora e costumes em geral. Depois ficaram amigos, Rosa ajudou muito Manuelzão e até escreveu uma novela em homenagem a ele em Corpo de Baile: “Uma história de amor”.
Falecido em 1997, Manuelzão está mais vivo do que nunca em Andrequicé, onde existe um Cine Clube Manuelzão, que funciona como centro cultura. Sua humilde morada foi transformada em Museu Manuelzão. E a Semana Cultural Manuelzão ocorre todos os anos. É notável a forte lembrança que ainda desperta nos moradores. É um exemplo de como uma localidade materialmente muito humilde pode ser engrandecida e vitalizada pela formação de uma identidade positiva ligada à cultura.
Mas nem tudo são flores em Andrequicé. Há uma verdadeira muralha de eucaliptos em torno do povoado, que vê suas fontes de água secarem graças a uma política predatória por parte da Companhia Gerdau, que chega a assorear veredas e a plantar eucaliptos bem na beira de cursos d’água. Como me disse a dona de um bar local: “daqui a pouco a gente vai ter que comer carvão”. Muito antes de chegar em Andrequicé é possível se assustar com visões de um horizonte somente formado por massas compactas de eucalipto, que os ecologistas chamam de “deserto verde”.
Na viagem de 2016, conheci seu Toco Pequi, um raizeiro famoso que lembrava o seguinte: o eucalipto é tão ruim que passarinho não pousa nele e ali perto não dá nem cobra. A produção é utilizada na fabricação de aço. A “riqueza” produzida em troca da destruição do meio ambiente de Andrequicé e arredores vai para outros locais, onde a madeira é processada e vendida.
Em Andrequicé também há um grupo de bordadeiras que utilizam bastante as frases de Guimarães Rosa para enfeitar suas obras. Dentre elas, a que dá título ao nosso texto: “Sertão: é dentro da gente.” É bom que seja mesmo, porque nesse ritmo, logo não vai sobrar nada.
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
Foto: M.A., sertão de Minas, agosto de 2019