DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 2:
“URUCUIA? PRAZER. MEU NOME É JÉSSICA” (Andrequicé – Urucuia)
Dormi bem na Pousada de Dona Olga. Aos oitenta anos ela ainda faz a cama dos hóspedes e cuida para que esteja tudo direitinho. O quarto era simples, mas limpo, e a cama pequena me fez pensar que Manuelzão deve ter penado por aqui, já que era mais alto do que eu. Era um leito-navio que adernava só para um lado, tive que ter cuidado para não escorregar e cair. Lá pelas três da manhã acordei com um afinado concerto de galos. Estava tão cansado que voltei a dormir e só despertei pouco depois do sol nascer. Implorei para que fizessem um café sem açúcar na única padaria e fui para a estrada. Tinha só 418 quilômetros a percorrer até a cidade de Urucuia, bem no norte de Minas. Mas por que Urucuia?
Por conta do encontro com o Menino e por tudo o mais, o São Francisco é o rio mais importante do livro, ele divide a vida de Riobaldo em duas partes, conforme ele mesmo diz. Ali aprende o conceito de travessia. E “carece de ter coragem”. Mas o rio amado por Riobaldo é o Urucuia. Já no primeiro parágrafo do livro ele aparece, quando o narrador conta ao doutor que há quem considere que o sertão só começa em “fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia”. Acrescenta que o Urucuia “vem dos montões oestes” e que à beira dele tudo dá, de “fazendões de fazendas” até matas virgens, com “madeiras de grossura”. Pode-se dizer que no livro o Urucuia é sinônimo do sertão profundo.
Depois o rio é citado dezenas e dezenas de vezes, do início ao fim do livro. O mais significativo não é o quanto ele aparece e sim de que maneira. Para começar, Riobaldo identifica-se totalmente com o Urucuia: inúmeras vezes ele usa expressões como “o meu Urucuia”, “esse rio meu Urucuia”, “o rio meu”, “rio Urucuia é o meu rio”. Logo nas primeiras páginas exalta seu rio, comparando-o com outros: “o rio Cariranha é preto, o Paracatu moreno; o meu, em belo, é o Urucuia, paz das águas… É vida!…”. “Meu rio de amor é o Urucuia.”, diz Riobaldo. Faz uma equivalência entre a sua trajetória e a do rio: “Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar.” O Urucuia não desagua no mar e sim no São Francisco, mas é claro que suas águas chegam no oceano, da mesma forma que nossas vidas continuam, de certa forma, para além do findar de nossa existência.
O Urucuia, sobretudo o Alto Urucuia, isto é, o trecho mais próximo da nascente, aparece no livro como mais “selvagem” e preservado, com “águas claras”, muitos pássaros cantantes, altas árvores e flores exuberantes (a flor roxa da caraíba). Até a areia do fundo do rio Urucuia é mais fina segundo Riobaldo.
A região em torno do rio, configura-se como um espaço mítico, carregado de poderes, é “o rio das montanhas”, que corre pelo Chapadão “onde tanto boi berra”, onde até as estrelas preferem brilhar. Ali Riobaldo sonha ver “uma igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino”. E desta região mágica haverá de vir, para ele, “algum santo”, “das beiras deste meu Urucuia”. Pensa também em formar uma “cidade da religião”. Onde? Claro que “nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia”. A ideia seria iluminar as trevas, da mesma maneira que “O meu Urucuia vem, claro, entre escuros.”
Lembra o que o povo diz dos urucuianos: são capazes de conversar “com o peixe para vir no anzol”. O Urucuia chega a parecer fora do tempo, eterno: “o Urucuia – lá onde houve matas sem sol nem idade. A Mata-de-São-Miguel é enorme – sombreia o mundo…”. Sem falar na conversa entre Riobaldo e o jagunço Quipes, em que este pergunta a Riobaldo: “O Urucuia não é o meio do mundo?”.
Em momentos chave da narrativa do velho fazendeiro, o Urucuia comparece. Para falar dos dois lados de Otacília, afirma: “sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de brabeza.” Quando ele se torna chefe, invés de sair à caça do Hermógenes, Riobaldo leva toda a tropa “primeiro, para o Chapadão do Urucuia”. Precisava renovar suas energias: “ver o rio meu – beber em beira dele uma demão de água…” Ao decidir sozinho os destinos do bando, sem consultar os sub-chefes, como era de praxe, novamente se compara ao rio: “Nem não contei meus projetados. O rio Urucuia sai duns matos – e não berra; desliza”. Quando Riobaldo planeja se casar com Otacília, convida Diadorim a morar com eles “numa fazenda, em boa beira do Urucuia…”, onde, dentre outros pássaros, haveria o mais belo de todos, o manuelzinho-da-croa.
E no momento mais dramático do livro, quando o corpo nu de mulher lhe revela o segredo de Diadorim, Riobaldo não deixa de citar o Urucuia: “Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia.”
A centralidade do Urucuia está mais do que assentada. Agora cabe fazer a pergunta: por que a ligação especial de Riobaldo com o rio? Ele não nasceu no Urucuia nem nas imediações. De onde vem tanta identificação? Duas passagens nos dão pistas preciosas. Na primeira, Riobaldo elogia: “Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em caminho para se encontrar com o sol.” Ora, a maioria dos afluentes do São Francisco nesta região, vem do leste para o oeste, o Urucuia é a grande exceção. A vida de Riobaldo é uma vida de aprendizagem, de busca do conhecimento, da luz. Da mesma forma que o Urucuia, ele vai em direção do sol. Riobaldo sempre se afirma diferente de todo mundo. Vale lembrar a segunda passagem acerca do Urucuia que poderia se aplicar a Riobaldo: “Ele está sempre longe. Sozinho.” É a lição que Riobaldo aprendeu com seu compadre Quelemém: “a colheita é comum, mas o capinar é sozinho…” E por fim a identificação absoluta, praticamente uma assimilação entre o um e o todo: “Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre.”
Por isso tudo é que o burrinho pedrês e eu estávamos na estrada rumo a Urucuia. Bem disposto, fui parando para fotografar: porteira de fazenda, buriti, eucaliptal, ipês e a vegetação do cerrado mineiro castigada por uma seca que dura meses. O bom é que nessas estradas menores quase não há movimento. Apenas silêncio e paz.
Antes de chegar à cidade, passo e paro na ponte de onde se vê o Urucuia. Arrepiado, sinto que a verdadeira viagem ao sertão começa aqui. O rio é que nem aquelas mulheres tão bonitas das quais você não consegue lembrar, só quando as vê novamente. Por perto havia uma casinha de sertanejo de pau-a-pique e teto de palha, como devia ser no tempo de Riobaldo e Diadorim. Quem sabe os dois estão lá, felizes feito um casalzinho de manuelzinhos-da-croa vivendo à beira do rio?
Depois da ponte, logo vem a cidade. Até 1992 era parte do município de São Francisco, depois adotou o nome do rio. Nasceu como um pequeno porto no rio onde havia uma mangueira, daí a localidade ser chamada de Porto de Manga. De início não havia nem estrada para São Francisco. Ainda hoje boa parte da estrada, até a cidade de Pintópolis, é de terra batida.
O centro urbano é bem pequeno. Apesar do censo registrar mais de quinze mil habitantes, mais da metade vive no campo. Tem uma avenida principal com uns dois quilômetros e algumas ruas perpendiculares. Se você seguir uma rua lateral vai acabar na zona rural, com bois pastando. Há um que de faroeste, de cidade recém-criada no meio do nada.
De início a base da economia foi a destruição: o corte de madeira para lenha. Depois de mais da metade do município ser desmatado, a atividade econômica migrou em parte para o café e, sobretudo, para a pecuária. Há enormes fazendas à beira do rio, algumas delas na mão de proprietários de outros estados.
A cidade está bem no Chapadão do Urucuia, olhando em qualquer direção há um horizonte plano, que parece infinito, sem o menor sinal de montanha ou elevação de qualquer espécie. Dá um amanhecer e um por do sol cinematográficos.
A primeira coisa que fiz depois de colocar as malas no quarto foi ir até o rio, razão maior da viagem. Atravesso a rua principal e desço a rua que vai dar no Urucuia, que a cidade parece esconder feito um filho bastardo. Chegando lá havia um carro com colossais caixas de som tocando “Meu nome é Jéssica”. Pior do que isso: um sujeito se exibindo no jet ski. Nunca te banharás nas mesmas águas …
Apesar de tudo isso, meu coração bate feito Here comes the sun diante do rio. Ele continua um sonho de lindo. Os deuses ajudaram e conheci Cari, pescador que amanhã vai me levar em um passeio de barco. Tenho um encontro marcado com o rio Urucuia. Não é meu, é do Riobaldo, mas vou pegar emprestado um pouquinho.