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DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 3: NO URUCUIA, APRENDENDO COM CARI

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 3

NO URUCUIA, APRENDENDO COM CARI

Da primeira vez que estive diante do rio Urucuia, viajando com meus amigos Gustavo e Yan, logo me banhei em suas águas. Foi o que chamei de batismo rosiano. Coincidência ou não, de lá para cá tenho mergulhado cada vez mais na obra de Guimarães Rosa. De certa forma, não há dia em que eu não caminhe pelo Grande sertão em busca de suas veredas.

Retornar ao “rio das montanhas” de Riobaldo, era como voltar para um sonho, era um ritual rosiano que pretendo cumprir enquanto os deuses me concederem tempo e força. Depois do café fui caminhando até o rio para encontrar meu guia.

Cari é jovem, na casa dos trinta e poucos anos. Filho de pescador, nasceu em São Francisco mas foi criado ali, à beira do Urucuia, diz apontando para uma casa verde bem à margem. Tem mais oito irmãos, todos migraram para São José dos Campos e outras cidades grandes. Só ele ficou a viver com a mãe, evangélica. Cari é pescador mas faz também outros trabalhos para complementar sua renda.

Enquanto subíamos o rio na direção do que ele chamou de “cachoeiras”, nossa conversa ia se tornando cada vez mais viva. O Urucuia tem uma beleza imponente, com longas curvas e a bela vegetação das margens. Era um daqueles dias de céu azulíssimo e nuvens dramáticas tão comum por aqui. O papo começou bem brasileiro, futebol, mulher, a vida em geral. Mas aos poucos virou uma espécie de aula recíproca.

Cari Por me ensinou a distinguir o jatobá da gameleira. Identificou os pássaros que vimos: Socó, Gavião, Arara Canindé, Martim Pescador, Carcará e outros. E sobretudo me contou dos segredos do rio, que ele às vezes costeava junto às margens para escapar do vento. Falou das cachoeiras submersas, quando há uma pedra quase à superfície, um perigo pra quem não conhece. Disse também que o rio está ficando menos fundo a cada ano que passa. Tem gente que já derrubou a mata ciliar pra fazer horta ou mesmo um lugar para pescar. Há algumas mangueiras grossas sugando água para as fazendas. Ele me explicou que na margem esquerda só tem um pouquinho de mata e o resto é pasto, há fazendas com centenas de bois.

Expliquei que tinha vindo ao Urucuia por causa do Grande sertão e aos poucos fui contando a ele a história do livro, de como Riobaldo, um fazendeiro velho, que na juventude havia sido jagunço, recebe um doutor em sua casa e começa a repassar toda a sua vida, marcada por um grande amor que ele havia perdido. Só que esse amor era um outro jagunço e por isso ele ficava totalmente desesperado, porque não era de gostar de homem. Quando o outro jagunço morre ele descobre que era uma mulher. Riobaldo acha até que contribuiu para a morte de Diadorim. Depois passa a vida toda pensando naquilo, tentando tirar a lição do que havia acontecido.

Sublinhei que Riobaldo tinha rio no nome, pois o as águas do rio não param, do mesmo jeito que Riobaldo não para de aprender e de se modificar. Expliquei Heráclito e para ele, Cari, barranqueiro, entender um pensamento relativo a um rio não foi difícil. Cari é muito inteligente, pegava tudo de primeira e logo fazia comentários que mostravam que havia entendido. Sobre Dia-dorim, mostrei que Rosa havia juntado o falar mineiro: dorim, dorzinha, com o prefixo grego, dia, através, pois foi por causa da morte de Diadorim que Riobaldo se tornou um homem sábio, um homem que reflete, pensa, avalia. Expliquei também o título do livro: o grande sertão da vida, sem sentido e as poucas mas preciosas veredas que às vezes encontramos. Foi uma conversa muito bacana. De igual pra igual. Os dois tinham algo para ensinar e para aprender.

Recomendei a Cari que estudasse, comentando acerca da sua inteligência, da sua rapidez de raciocínio e capacidade de compreensão fora do comum. Também mencionei a importância do Urucuia no livro, de como é um rio diferente, que vem do poente para a nascente ao contrário dos outros afluentes do São Francisco, da mesma forma que Riobaldo é diferente de todo mundo.

As “cachoeiras” são, a meu ver, corredeiras, um belo lugar, uns oito quilômetros acima do nosso ponto de partida. Uma hora de barco. Lá ficamos, sentados em pedras, deixando as verdes águas correrem sob os nossos pés. E conversando feito dois bons amigos. O encontro com Cari me deu uma vontade enorme de voltar ao Urucuia para falar às crianças e adolescentes acerca do Grande sertão. É um patrimônio cultural que lhes pertence de direito.

Quando voltamos, agora a favor da correnteza, encontramos um amigo de Cari, Nilsinho, segundo Cari apelidado de Cabeça de Ovo. Este conta algo que me deixa, literalmente, com água na boca: em setembro, ele e mais uma turma viajam três dias de barco até ver o Urucuia desaguar no São Francisco. Em alguns trechos, têm que sair do rio para puxar o barco, para evitar as quedas d’água. Retornam de caminhão. Dá para imaginar a vontade que tenho?

Já estava na hora do almoço, algo tão sagrado para mim quanto a literatura rosiana. Depois de me despedir de Cari e Nilsinho, volto ao hotel, almoço e consigo encontrar uma bondosa atendente de lanchonete disposta a fazer meu café sem açúcar. Fico ali vendo um jogo da Premier League e depois de um tempo resolvo passear pela cidade, tirar umas fotos. À tarde, o céu estava de um azul de Juízo Final de Michelangelo. No canteiro que divide a avenida central da cidade, havia lindos pássaros que se deixaram fotografar à vontade, dentre eles o belíssimo Cardeal-do-Nordeste: pequeno, asas acinzentadas, barriga branca e cabeça de um vermelho bem aceso.

Passei um tempo no hotel lendo e escrevendo e saí. Queria apenas jantar, mas fiz mais uma descoberta. Não havia muitas opções e acabei em um lugar que se diz churrascaria mas é uma espécie de Outback do Cerrado, servindo porções de carnes com batata frita ou mandioca. Quando estava alegremente a me entupir de calorias, passam pela avenida uns duzentos ou trezentos cavaleiros, todos muito bem trajados, alguns uniformizados. Era o que eles chamam por aqui de “Cavalgada”. É um comício disfarçado. Um candidato a prefeito só pode fazer campanha meses antes do pleito. Muito antes disso, pode promover uma cavalgada: chama as pessoas para a sua fazenda, dá café-da-manhã, churrasco, depois todos passeiam pela cidade e por fim voltam para shows e bailes que podem varar a madrugada. Não há um só cartaz do futuro candidato. Nem precisa, todo mundo sabe quem pagou a festa.

A vestimenta da turma merece comentário. A absoluta maioria dos homens e das poucas mulheres, levava chapéu tipo faroeste e botas compridas, tudo americanizado. Enfim, cada um vive seu sonho ou seu pesadelo.

Ver aquilo foi mais indigesto do que as batatas fritas.