DIÁRIO DO SERTÃO: DIA 4
DOMINGÃO EM URUCUIA
Na noite anterior, precisava caminhar um pouco depois de me empanturrar de iscas de peixe e batatas fritas. Segui pela avenida principal (e única) da cidade e fui até onde ela acaba. Depois do asfalto, o sertão. A estrada de terra eu enfrentaria dias depois. Dei meia-volta e parei em um posto de gasolina (há dois). Não iria dispensar um chocolatinho de sobremesa. Ao fundo da lanchonete havia uma televisão que passava um jogo do meu time. Claro que parei para ver. Um senhor alto e magro, de cabelos totalmente brancos, tinha sentado ali para ver o jogo do Atlético Mineiro. Conformado, acabou vendo mesmo o jogo do Flamengo. O que seria dos homens se não fosse o futebol? Como teriam assunto? O fato é que logo começamos um papo animado.
Ao saber o motivo da minha estada, falou que passasse o dia seguinte na sua casa. Seu filho é músico e poderia tocar umas modas de viola. Indaguei o endereço: ele disse que morava a duas ruas do hotel, era só eu perguntar que qualquer um saberia informar. O dia seguinte era um domingão, sem passeio programado ao rio Urucuia, um tédio de pedra a ser atravessado feito um deserto. Esqueceram de mim no hotel e tive que tomar café no outro posto de gasolina.
Dei um tempinho e depois saí à rua. Entendi o que é uma cidade pequena: parei a primeira pessoa que vi, um senhor em uma moto. Não só me indicou onde morava meu novo amigo mas até me forneceu seu sobrenome. Por aqui alguém tem que pensar duas vezes antes de fazer algo que a cidade irá saber e jamais esquecer. A esta altura todos já deviam conhecer a história de um coroa carioca apaixonado por Guimarães Rosa e pelo rio Urucuia, sem falar na estranha mania de só tomar café sem açúcar.
Deve ter sido por isso que o homem da moto, depois de me dar as indicações, fez a questão de pegar o celular e me mostrar fotos de um terreno com luz e água à beira do rio. Já estão até me oferecendo terras no Urucuia. Cheguei juntamente com um dos filhos do meu amigo, um rapaz muito simpático de uns trinta anos. Fui muito bem recebido. Logo chegou o filho mais novo, o tal que é músico. Cara boa, espírito leve, herdou a tranquilidade do pai.
Primeiro ficamos todos sentados na sala. Quando conto a história do livro, a filha, até então calada, confirma ser difícil, afirmando que só conseguiu ler as vinte primeiras páginas. Até agora, penso eu, é a primeira pessoa que me diz ter lido ao menos uma página de Grande sertão: veredas.
Depois nos sentamos no quintal, em uma mesa grande onde a família se reúne para as refeições, em meio a duas ou três galinhas ciscando. O irmão mais jovem pega o violão e, a pedido do pai, toca algumas músicas. Começa por Zé Ramalho, Alceu Valença e Fágner. Gosta mais de MPB, por ser mais refinada. Disse que sabendo umas cinco notas dá para tocar quinhentas músicas breganejas, que normalmente usam umas duas ou três notas. Mas ele mesmo toca duas ou três belas músicas sertanejas.
Aliás, pior do que o café açucarado é a onipresença opressora da música breganeja a invadir nossos ouvidos em todos os bares, brotando a todo volume de carros parados ou em movimento. É uma poluição sonora nefasta e irritante. Não se ouve nenhum outro tipo de música. Não sou conhecedor, mas tive a impressão de que todas as canções têm o mesmo tema: são homens pedindo a suas mulheres que não os abandonem, que voltem para casa, que os perdoem e por aí vai. É a mais pura dor de cotovelo masculina. Infelizmente, pelo jeito os machões arrependidos não levam muito jeito para a música.
Voltando para o quintal do meu amigo, o filho mais velho começa a falar do movimento Nova Urucuia, que deseja renovar a política na cidade. Diz que o atual prefeito já se elegeu cinco vezes. Em uma delas tinha um candidato testa-de-ferro e falava abertamente no comício que quem iria governar era ele. O prefeito não tinha nada e agora está cheio de fazendas.
Um dos maiores problemas é a água. As pessoas usam “outorgas” obtidas em épocas passadas, quando havia abundância de chuva e, consequentemente, de água. Com isso, retiram água do rio em grandes volumes, sobretudo para a agricultura. Em Urucuia há pivôs de irrigação que alcançam um quilômetro, o que fez o rio praticamente secar em setembro de 2018. Não é somente ali que existe o problema: Montes Claros teve que colocar uma tubulação de 55 quilômetros para não ficar sem água.
A esposa do meu amigo, até então calada e sorridente, entra na conversa: a população está tão revoltada que quer quebrar os pivôs. Quando há pouca água e está faltando água para os moradores, os fazendeiros mudam o lugar dos “encanamentos” e vão buscar água de qualquer forma. Lembrar que além das plantações de café, há mais de dois bois para cada habitante de Urucuia.
A conversa estava pesada, mas a hospitalidade vinha na forma de um fino e delicado beiju. Envergonhado, não tive coragem de dizer que não tomava café com açúcar. E tive que beber umas três xícaras. Se eu tomava tudo, logo enchiam novamente. Se deixava esfriar, mandavam jogar fora e colocar mais.
Deixando o açúcar de lado, voltando para o lado amargo, os dois filhos criticam o prefeito. O mais novo diz que o supremo mandatário é tão desatualizado que não sabe mexer em um celular, nem mesmo para enviar um zap. O irmão mais velho complementa: ele não tem plano algum para a cidade, a não ser encher os bolsos.
Urucuia virou município em 27 de abril de 1992, tornando-se independente de São Francisco. O brasão da cidade explicita bem a quem ela serve. Sua imagem central é um campo sendo irrigado por pivôs. No alto, à direita, bois. À esquerda, no alto, grãos de café. Entre os dois, espremido, um solitário buriti. E mais grãos de café envolvendo o brasão à esquerda e à direita.
À tarde, depois de almoçar o tradicional arroz com feijão tropeiro, dei uma corrida pela avenida central e me recolhi ao hotel para ler, escrever e descansar.
Amanhã vou fotografar pássaros no rio Urucuia.
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas