DIÁRIO DO SERTÃO: DIA 5
O SERTÃO É DO TAMANHO DO MUNDO
Não sei se o Urucuia é o centro do mundo. Para um rosiano, de qualquer forma, o rio é o centro do sentido e do mistério. Voltei a ele como se o mundo estivesse sendo recriado no movimento daquelas águas. Expliquei a Cari que gostaria de fotografar os pássaros. Desta vez ele decidiu que iríamos descer o rio, a favor da corrente.
Sete e meia da manhã, estava frio, ao menos no rio, pois na cidade o sol já prometia um calor de rachar. Um imponente socó-boi estacionado junto a uma balsa de criação de tilápias disposto a tomar seu café-da-manhã foi o primeiro pássaro a aparecer. Quando nos aproximamos, se assustou e me presenteou com uma bela foto em pleno vôo, asas abertas planando sobre o espelho das águas. O simpático e minimalista casaca-de-couro-amarelo, com seus dois tons de café-com-leite, deixou-se fotografar livremente. Uma elegante andorinha do rio, azul e branca, meditava solitária em cima de um tronco de árvore.
Desembarcamos na margem direita para ver outras espécies. Estavamos nas terras de um casal amigo de Cari. Eles inclusive passam por nós de carro e dizem para ficarmos à vontade. O corrupião, chamado em outros lugares de sofreu, concriz e sofrê é belíssimo com sua coloração laranja e preta. É um laranja berrante, que entra pelos olhos da gente e o contraste com o preto é perfeito.
Fiquei contente por conseguir fotografar periquitos de encontro amarelo, bem verdinhos com uma faixa amarela no ombro. Não é que sejam raros. É que mesmo no Rio de Janeiro, no Jardim Botânico ou em outros locais, até mesmo na árvore em frente a janela da minha casa eu os vejo. Fotografá-los, todavia, é dificílimo, estão sempre voando de um lado para o outro. Não se pode dizer que não aproveitem bem o fato de serem passarinhos.
Ainda em terra, vi e fotografei sem dificuldades o tucanaçu, o maior dos tucanos. É um bicho bonito, mas não se pode dizer que seja simpático. Nem popular entre outros pássaros, já que saqueia os ninhos de outras espécies, devorando ovos e filhotes. Foi por isso que um casal do assim chamado papagaio verdadeiro botou o tucanuçu para correr, ou melhor, para voar. O que eu consegui documentar.
Voltamos à canoa. Agora era a vez dos gaviões. Primeiro nos aproximamos lentamente de um gavião-belo, que merece o nome com sua plumagem toda vermelho-alaranjada e a cabeça branca, o que dá enorme destaque aos seus olhos. De fato ele pareceu nos encarar, refletindo, avaliando quando seria a melhor hora de bater asas, o que fez lindamente e por sorte eu consegui registrar.
O gavião-caboclo, cor de ferrugem, não nos deu tanta bola, ficou olhando para a gente meio de lado, atitude que casava bem com seu porte aristocrático e orgulhoso. Mais tarde, o vimos em plena ação levando seu almoço no bico, a saber: uma cobra. Não fui rápido o suficiente para fotografar, fica para a próxima.
Retornamos com os olhos carregados de beleza.
Mas o dia ainda não havia terminado.
Depois do almoço, tomei uma decisão seríssima. Entrei numa loja tipo Ponto Frio e comprei uma cafeteira para poder tomar café sem açúcar sem ter que contar com a misericórdia das moças da lanchonete. A inauguração do aparelho libertador foi em grande estilo, comprei até chocolate para acompanhar o precioso líquido.
Passei a tarde molengando, baixando as fotos e escrevendo. Fui jantar na Pensão da Dona Sônia, uma senhora baixinha, muito simpática, que faz uma boa comida caseira. Percebe-se o quanto sofreu, mas ela tem uma casca de alegria bem forte. Evangélica, mas sem fanatismo, só não vende cerveja ou outra bebida alcóolica em sua casa.
Quando eu já estava terminando de comer o inescapável feijão tropeiro, chegou um amigo de Dona Sônia, o Paraíba Chaveiro. É alguém de quem ela tinha me falado muito. Ele senta-se à mesa comigo e também janta, reclamando não poder tomar uma cervejinha gelada. É daqueles nordestinos cabeça chata. Um homem volumoso, que sente o peso dos seus sessenta e oito anos. E uma pessoa absolutamente ímpar.
Começou a conversar comigo meio desconfiado. Entendo. Vai que eu era um desses professores universitários chatos, de nariz empinado, metidos a besta a quem a morte, algum dia, terá o prazer de informar que não são imortais. Vendo que eu estava ali para aprender, seu Paraíba, como o chamei desde o início, relaxou. Saímos de lá amigos.
Na verdade, ele é pernambucano de Bom Jardim, mas como veio a Urucuia fazendo parte de um conjunto chamado Trio Paraíba, ganhou o apelido de Paraíba e depois, ao trabalhar como chaveiro, de Paraíba Chaveiro. Conta, bem humorado, que há em Urucuia um paraibano a quem todos chamam de Pernambuco.
Sua vida. Aos sete anos seu pai morreu e ele teve que trabalhar. Disse que seu destino era estudar e ser cantador, seu sonho. O resto, diz ele, é a história de sempre: foi para o Rio, foi para São Paulo e acabou em Urucuia. Mas isso não o impediu de ser poeta e músico. No Trio Paraíba ele tocava, cantava e compunha as músicas. Trabalha com artesanato, fez objetos com a palha do buriti que correram o Brasil. Uma música sua ganhou um festival regional. Em meio a nossa conversa, vira e mexe recitava seus versos, bonitos, com voz forte e afinada. Nessa hora eu descubro que o nome dele, de artista, de criador, é Zé de Lima.
Seu Zé de Lima chegou a ser secretário de Cultura de Urucuia e acha que fez um bom trabalho, ao contrário do que ocorre hoje, quando a cultura está abandonada. Idealizou um centro cultural, que chegou a ser construído, mas a atual administração abandonou o projeto e o prédio está fechado.
Quando conversamos sobre literatura, ele faz questão de ser justo. Diz que é autodidata e fala que além de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e José de Alencar lhe deram muitas alegrias. Fica entusiasmado com a minha ideia de falar às crianças do Urucuia sobre Grande sertão: veredas. Se soubesse que eu vinha, teria marcado minha ida em ao menos três escolas. Lamenta que eu esteja indo embora amanhã, teríamos muitos lugares a visitar.
Dona Sonia senta-se conosco. Seu Zé de Lima e ela passam a lamentar a destruição do meio ambiente em Urucuia. O desmatamento, a destruição deliberada de veredas com escavadeira para transformar tudo em pasto para o gado. Seu Zé de Lima diz que quem fez isso foi um homem que já foi prefeito de Belo Horizonte e, espantosamente, presidente da COPASA, a companhia estatal que cuida do abastecimento de água em Minas Gerais. Resultado: hoje a fazenda desse homem é “um poeirão danado”.
Dona Sonia e ele falam do desaparecimento dos peixes do Urucuia antes extremamente variados e abundantes. Ela conta da dificuldade que tem em comprar peixe para seu restaurante. Fico espantado com a rapidez desta destruição, pois ela só chegou à cidade no fim de 1985. Ou seja, foi um processo que ocorreu em apenas trinta anos. A mesma extinção ou desaparição em massa aconteceu com os pássaros, lembra Seu Zé de Lima, o que relativiza a linda manhã que eu tivera.
Amanhã eu parto para São Francisco. Prometi a Seu Zé de Lima que no ano que ver retorno para a gente passear um pouco. Ele recomenda a Serra das Araras e o belíssimo Vale do Peruaçu. Há tanto a conhecer.
Riobaldo tem razão: “o sertão é do tamanho do mundo”.
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
Foto: M.A., gavião-caboclo no rio Urucuia, agosto de 2019