Histórias do Alvito
Esta é dedicada a professores e professoras, que sabem bem do que estou falando
O INFALÍVEL MÉTODO ALVITO DE perder DINHEIRO
Sim, vocês leram direito: perder dinheiro. Ao menos é um método infalível. A tendência se revelou desde cedo. Durante a adolescência já era sólida, estava cristalizada. Quando tirou a primeira colocação em um simulado da escola, decepcionou os professores um a um. Pois quando vieram lhe perguntar o que iria fazer, sua resposta foi um balde de água fria: — Jornalismo. É preciso lembrar que a censura imperava e o o AI-5 estava em plena vigência. Os professores talvez sonhassem com um primeiro lugar em Medicina ou Engenharia para fazer o nome do colégio. Sem falar que estas profissões lhe dariam mais dinheiro.
Largou o curso de jornalismo no segundo ano e foi cursar História. Ainda pior, imagine só, ser professor. O pai quis convencê-lo a fazer um concurso do Banco do Brasil. Ele se manteve caminhando na direção que escolhera mesmo que parecesse uma nau à caminho do abismo. Romântico, sonhava em ser professor na Ilha de Paquetá ou em alguma praia distante do Nordeste.
Os deuses quiseram dar-lhe um outro destino e ele acabou virando professor da universidade do outro lado da Baía, onde passou 32 felizes anos dentro da sala de aula e outros 32 miseráveis anos em meio à fogueira de vaidades e maldades emanando de gabinetes, corredores e alcovas. Depois desse tempo, quando o amor à profissão só aumentava da mesma forma que o desgosto pela universidade, resolveu se alforriar.
Segundo uma lei bem draconiana, quem se aposenta um ano antes perde trinta por cento do seu salário. Foi o que aconteceu com ele. Vivia a se lembrar de Tio Pip, galês, que fora piloto de uma das melhores companhias aéreas do mundo. Assim que pôde se aposentar, o fez, embora todos dissessem que estava perdendo muito dinheiro. Deixou os céus e passou um ano a escalar montanhas, para sentir a paz e a solidão dos picos mais altos. Em seguida, veio o câncer e meses depois ele não estava mais no céu nem na terra.
Ele, por sua vez, não queria escalar montanhas e sim se batizar rosiano. Comprou o burrinho pedrês e foi mergulhar nas águas do Urucuia, história que vocês já conhecem. Durante três anos, as finanças naufragaram tanto que ele se tornou escravo por dívidas do Banco do Brasil.
Mas continuava a só fazer o que mais gostava: dar cursos sobre Machado de Assis, Proust e, sobretudo, João Guimarães Rosa. Os grupos eram pequenos, ele não era nada conhecido, muito menos na área de literatura. Deu para equilibrar as contas e ir pagando as prestações da dívida. Tinha ficado sem condições de retornar a Minas, todavia, o Burrinho ficava preso na garagem pois não havia dinheiro para pagar as taxas.
Aí veio a pandemia e, de repente, todo mundo sabia e queria fazer um curso via Zoom, coisa que há dois anos ele vinha oferecendo em vão. As turmas aumentaram em número, entraram mais recursos e ele se libertou dos grilhões dos juros e da correção monetária.
Não fez nenhuma concessão para que isso acontecesse. Manteve o número máximo de alunos por turma, o que permite que mire nos olhos de cada um dos seus alunos e alunas, que os conheça pelo nome, que dê chance a eles de perguntar e de participar da aula ativamente.
Outro dia ficou sabendo de um renomado intelectual, a quem ele muito admira, que abriu um curso para 150 pessoas. Pode ser que funcione, ele é que sabe, mas um curso de leitura rosiana não pode ter tanta gente.
Se eu estabelecesse um prazo para o curso, com certeza seria mais fácil conseguir alunos. Seis meses ou até um ano. Quando digo que o curso não tem prazo, sei que consideram isso uma excentricidade ou até uma loucura. Muitos irão deixar de fazer o curso por isso e metade dos alunos desistem no meio do curso por isso. Novamente vem o mantra: “Alvito, você está perdendo dinheiro”.
Mas eu não quero um curso em que os alunos leiam o Grande sertão: veredas, eu quero uma travessia literária e existencial em que o Grande sertão: veredas leia cada um dos alunos e alunas. Uma experiência que os transforme. E isso não se dá com prazo marcado, sob a tirania do calendário. Era isso que o Rosinha queria, sem mascarar as dificuldades:
“O idioma é a única porta para para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. (…) Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o espírito cresça.”
Eu sei que estou perdendo dinheiro. Sou mestre nessa arte, fiz isso a minha vida inteira. Perdi dinheiro para ganhar experiência, conhecimento, amizade e muito mais. O que eu comprei com todo esse dinheiro que eu perdi com prazer, foi a alegria de viver a minha vida de acordo com meus valores e desejos. E irei continuar fazendo isso.
Para resumir, basta citar um verso de uma música dos Beatles, que aliás perderam milhões, quiçá bilhões, ao deixarem de tocar juntos:
“Money can’t buy me love”