MIRAGENS ROSIANAS
Marcos Alvito
O maior amigo do homem é o freio de mão. É o que você aprende ao chegar de carro a Belo Horizonte. Sair das retas filosóficas do sertão para o freia-e-anda da grande cidade, mais do que desconfortável, é atordoante. Vir de um mundo em que as vacas conversam contigo não ajuda a compreender este turbilhão de atividades, de pessoas, um universo paralelo, um filme alucinógeno. É a metrópole, monstro devorador de água, luz, bichos, plantas, arrancados a ferro e fogo do planeta e transformados em lucro, o combustível que move a máquina.
Estava disposto a enfrentar os gigantes de concreto e vidro para achar vestígios da minha paixão literária maior: Guimarães Rosa. Há três anos, em Cordisburgo, soubera de um acervo de cartas de Guimarães Rosa a seu pai. O museu de lá me informou que estavam depositadas no Arquivo Público Mineiro em BH. São preciosas: nesta correspondência, o escritor solicita ao pai informações acerca do sertão, de animais, plantas, costumes.
Rosa nunca viveu no sertão. Mas até os quase nove anos teve a sua infância assombrada pelas histórias contadas pelos vaqueiros que traziam rebanhos para serem levados de trem. A casa onde o menino morava com a família funcionava também como venda, bem em frente a estação. Homens cansados, cobertos dos pés à cabeça de terra, tomavam uma pinga e dividiam com seu Florduardo suas aventuras. Enquanto isso, o menino Joãozito, atrás do balcão, corpo encolhido, olhos arregalados e ouvidos atentos, devorava cada palavra. O pai, caçador de onça cheio de histórias, também deve ter contado muitos causos a seu filho primogênito.
Por isso cá estou em BH. Caminho, felizmente a favor da lei da gravidade, e chego à formosa Praça da Liberdade. Merece o nome: muito se fala do conservadorismo mineiro, mas nas duas vezes em que a visitei, a praça era também um espaço para casais homoafetivos. Se é por amor eu sou sempre a favor. Dou a volta completa, contemplo belos prédios históricos, nada de Arquivo Público Mineiro.
Sem encontrar o arquivo, àquela altura elevado na minha imaginação a uma miragem rosiana, entro na Biblioteca Estadual. Queria descobrir onde está localizada a biblioteca em que o menino passava os domingos a ler, para isso levando um farnelzinho. Certa vez um senhor reclamou disso com o funcionário, que deu-lhe uma bronca, explicando que o “menino” era o Joãozito, que lia em inglês, francês e alemão e trazia comida para poder ler por mais tempo. Aos domingos, enquanto comia seus biscoitinhos, as histórias do sertão começaram a se misturar às grandes sagas da literatura universal. Se “O sertão é do tamanho do mundo”, uma biblioteca também é.
O prédio da Biblioteca Estadual, construído em 1958, é moderno, no sentido arcaico do termo. A funcionária da pesquisa foi simpática e estava interessada na infância de Guimarães Rosa. Porém, não conseguiu localizar a biblioteca frequentada por Joãozito. Mais uma miragem…
Desorientado, esbarro no Grupo (Escolar) Affonso Penna, onde Rosa estudou assim que chegou à capital, com oito anos. Ali completou o primário. É um prédio simpático, felizmente nada moderno, sem dúvida do primeiro quartel do século XX. É incrível como não há nenhuma placa indicando isso. Imaginem uma criança ouvir que um dos maiores escritores brasileiros (e do universo!) estudou na sua escola.
Quase desistindo, peço ajuda a uma bela mineira que passava impecavelmente vestida de preto a caminho do trabalho. Com pena dos meus cabelos brancos, sacou do celular e localizou no Waze o nefando Arquivo Público Mineiro. Ainda teve a misericórdia de apontar o caminho para um velho carioca.
Boa parte da minha formação é como historiador. Ela é muito valiosa. Mas sou homem da luz do dia, do céu novo de cada azul. Não me dou bem com arquivos empoeirados, a não ser por breves períodos, estilo guerrilha, entrar, atacar e sair. Ademais, há um certo tipo de historiador de arquivo, especialista em migalhas, que se acha superior a todos os entes que habitam a terra, inclusive as borboletas multicoloridas. Sendo assim, olhei o imponente prédio amarelo e suas escadas com alguma alegria e uma ponta de temor.
Minha intuição brontossáurica falha, mas também acerta. Mal tinha subido a escada, e um jovem de uns trinta anos veio na minha direção perguntar o que eu queria fazer ali. Como quem diz: como um mero mortal ousa adentrar o templo dos papéis velhos? Passei por esse cãozinho Cérbero de barbicha rala e me dirigi à portaria. Ali me encaminharam para o devido setor. Me esperava uma funcionária que não escondeu o desgosto em ter que interromper seus afazeres. Embora fosse a especialista, nada sabia. Telefonou para alguém que devia saber. É sempre outro que sabe. O oráculo explicou que as cartas tinham estado ali, realmente. Depois de tratamento técnico e digitalização, haviam sido devolvidas ao Museu de Cordisburgo. Há três anos que ando atrás dessas cartas, mais difíceis de agarrar do que Aécio Neves.
Dias depois, já no Rio, escrevo um e-mail para o Museu de Rosa. O diretor me informa que as cartas, digitalizadas ou em papel, não se encontram em Cordisburgo. Onde estão? Em outro arquivo, ao lado do que eu havia visitado. Escrevi para este outro arquivo solicitando uma consulta ao acervo de Guimarães Rosa. Até o fechamento desta edição não recebi resposta.
Rosiano que sou, sigo em frente. Resolvo ir atrás do Colégio Arnaldo, onde Rosa estudou até entrar na Faculdade de Medicina, aos 16 anos. Lá também estiveram Drummond, Murilo Rubião e o letrista Fernando Brandt, entre outros. O colégio foi fundado nos primeiros anos do século XX, por padres alemães, poucos anos depois da fundação de Belo Horizonte. Rosa, que aprendeu alemão desde os primeiros anos, neste ponto devia sentir-se totalmente à vontade. Era o colégio mais importante da nova capital. Também funcionou, inicialmente, como seminário.
O prédio é majestoso: ocupa literalmente um inteiro quarteirão. O hall de entrada é imponente, na forma de um octaedro, paredes todas de madeira e oito colunas jônicas de mármore. As paredes estão todas “decoradas” com fotos dos inúmeros e carrancudos padres que dirigiram a instituição ao longo de mais de 100 anos. Imagino Joãozito Guimarães Rosa, com seus onze, doze anos entrando pela porta. O pátio é do tamanho de um campo de futebol, talvez maior. Rosa dizia que jogava de centeralfe. Um tio, Vicente Guimarães, desmente. Afirma que o futuro autor de Grande sertão: veredas não ligava para bola. E para que time ele torcia? Se não soubermos isso, nada sabemos.
Vou à biblioteca do Colégio Arnaldo mendigando algo sobre Guimarães Rosa estudante. Nada. A moça, esta simples e mortal funcionária de biblioteca de colégio, foi mais gentil, competente e solícita do que os historiadores phdeuses. Depois de dez minutos de telefonemas, decifrou o mistério: os documentos sobre o Rosa estudante estão com o professor William, que leciona História no colégio. Desta forma, ela me pediu, de maneira doce porém ingênua, que eu anotasse meus dados para que o professor entrasse em contato comigo. Deixei tudo: telefone, e-mail, endereço, só faltou anotar o meu signo no horóscopo chinês, que, by the way é Rato, um brincalhão.
Como diria o Vupes, o alegre alemão do Grande sertão: Níquitis, não recebi telefonema nem e-mail, muito menos sinais de fumaça vindos do professor que guarda o tesouro. Cheguei a uma maravilhosa conclusão. Riobaldo existiu, era mesmo bom de mira, tatarana-lagarta-de-fogo, sujeito que duvidava de tudo e muito aprendia, embora tenha sofrido com seu “tudo é e não é”. Diadorim, neblina de Riobaldo, olhos de buriti, é mais real do que a taxa de desemprego.
O tal do João Guimarães Rosa é que não passa de uma miragem.