O que fazer diante de 50 crianças de 9 anos, rostinhos simpáticos mas inquietos corpos de meninos e meninas olhando para você à espera de que você comece a falar alguma coisa que valha à pena?
Minha filha tinha 9 anos. Na escola, de forma exemplar, a professora estava trabalhando a história da cultura carioca a partir da questão da presença africana. Durante a pesquisa, ela leu um pequenino artigo que eu havia publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional. Eu tratava um pouquinho das origens e sobretudo destacava o potencial documental e pedagógico do samba, de como cada música é uma viagem no tempo e no espaço, para valores e situações diferentes das de hoje.
Por causa disso, a professora me pediu gentilmente que fosse conversar com as crianças sobre a origem do samba. Como a turma da minha filha tinha 25 crianças, algumas das quais eu conhecia de passeios, festas da escola e aniversários, eu fiquei tranquilo. Fiz xerox de algumas gravuras de Debret para mostrar como os africanos, nas ruas, reconstruíram o significado das suas vidas, usando como armas principais o canto, a dança, a música. Aparentemente, a aula estava bem pensada.
O que eu mais gosto da sala de aula é o inesperado. Como na frase de John Lennon que não canso de citar: “A vida é aquilo que te acontece enquanto você está ocupado fazendo planos.” A aula também é aquilo que te acontece (e com a turma) enquanto você está preocupado com didática. Sendo assim, acho que todo professor tem que ter um plano B, C e até inventar um D na hora.
E eu tive que fazer isso naquele dia. Pois a professora, no seu entusiasmo, convenceu a professora da outra turma que valeria a pena também levar seus alunos e alunas. O resultado: o que antes seria uma aula intimista em uma pequena sala, com 25 alunos, passou a ser uma palestra num imenso salão, com 50 crianças sentadas em círculo. Aula é aventura e um momento daqueles é chave. Se você insistir burocraticamente no seu plano A pode até ser que dê certo, mas os deuses não costumam reagir bem diante da falta de coragem. Afinal eles têm que se divertir com alguma coisa lá no Olimpo, os imortais, crianças e alunos em geral, gostam de novidades.
Tem quem diga que história é documento, teoria e método. Tem quem diga que história é luta de classes. Tem quem diga que história é apenas narrativa. Para mim, história é com-paixão. Tentar entender homens e mulheres do passado no seu contexto específico, enquanto parte da aventura humana, adotando sempre a máxima de Terencio: “Nada do que é humano me é estranho”.
Aquela aula era importante para as crianças daquela escola de classe média, em sua imensa maioria histórica e sociologicamente brancas, entenderem que a própria cultura que dá sentido ao seu cotidiano, a sua alimentação, a sua maneira de andar e falar, tudo isso de certa forma nasceu na experiência traumática dos africanos sofrendo o trauma da escravidão.
Sendo assim, para sensibilizá-los, pedi que todos fechassem os olhos. E embarcamos todos num porão de navio negreiro. Com os gritos de dor e desespero, o choro de mulheres, crianças e homens. O odor de corpos suados, de doentes febris, de corpos sem vida ainda não lançados ao mar. As orações em diferentes línguas, o apelo aos deuses. A vontade de morrer de alguns. A raiva para continuar vivo de outros. O breve momento de poder cantar e dançar no tombadilho, para manter acesa a consciência de que não eram peças, mercadorias e sim seres humanos.
Nisto as crianças se acalmaram e ao mesmo tempo se assustaram com a violência do processo encoberto na naturalidade com que falamos a palavra “escravo”. Lembrei a eles que não há e nunca vai haver escravo, pode haver e infelizmente muito houve, seres humanos escravizados, sendo obrigados a viver na condição de escravidão. E daí fui em frente, analisando o processo de recriação do significado da vida que já mencionei acima.
Eu sabia que alguma hora aquele gás que a experiência do navio negreiro me havia dado haveria de se extinguir e eles iriam começar a perder o interesse. Foi aí que saquei a minha arma secreta, meu grande auxiliar naquela aula, a estrela da festa: o pandeiro. Toquei alguns sambas para exemplificar aonde desaguou esta cultura afro-carioca: na transformação da dor em alegria, da injustiça em superação, do preconceito em afirmação da sua identidade e da sua cultura. No final, para o último samba, pedi que todos se levantassem e sambassem.
E da mesma forma que na cultura afro-carioca, tudo terminou em festa.