A IMAGINAÇÃO NO PODER
Eu lembrava direitinho da recomendação da professora de Didática: sempre demonstrem entusiasmo pela matéria. Só que havia um princípio meu, para lá de simples: a relação com os alunos não pode ser fundada em mentiras. O que fazer então quando fui escalado para dar História do Brasil República? Dizer que eu não gostava da disciplina era pouco: eu tinha verdadeira aversão a ela.
Sendo assim, nas vezes em que fui escalado, feito um ponta-esquerda que é colocado de goleiro, não tive outra coisa a fazer senão dizer a verdade:
– Eu não gosto de dar aula de História do Brasil
Diante da turma paralisada, eu explicava os motivos, que ao fim e ao cabo resumiam-se a um só: visitar a nossa história me fazia mal, gerava uma indignação que me alterava. De qualquer forma, explicava a eles e elas que eu tinha gosto em dar aula e que tentaria fazer o melhor possível. Admito que devia ser um balde de água fria.
Não sendo especialista no tema e desesperado para gerar uma dinâmica mais prazerosa, resolvi arriscar, e muito. Ao invés dos habituais trabalhos em que o aluno é convidado a comparar dois ou três autores acerca de uma questão, bolei algo totalmente diferente. Resolvi abrir as comportas da criatividade.
A uma turma de Ciências Sociais pedi que elaborassem um diálogo, em pleno Estado Novo entre o presidente Getúlio Vargas, um trabalhador com carteira de trabalho e sindicalizado, um patrão e um malandro. O tema central deveria ser cidadania e classe trabalhadora.
Um diário foi o que solicitei a uma turma de Relações Internacionais. A personagem seria nascida em 1950, mas gênero, orientação sexual e contexto familiar poderiam ser escolhidos à vontade. Teria que escrever sobre três momentos: 1964, quando teria 14 anos, 1968, quando teria 18 e 1989, quando teria 39 anos. Sendo assim, o golpe militar, o AI-5 e o processo de redemocratização estariam contemplados. Lembro de um aluno que criou a seguinte situação: um garoto de 14 anos, estudante do Pedro II, marca um encontro numa sorveteria do centro da cidade com uma normalista. O encontro não acontece quando ele a cidade tomada por tanques e aí começa a refletir sobre o que aconteceu. Uma delícia de texto.
Mesmo quando eu era professor de História Antiga eu sempre repetia: “os gregos existiram em carne e osso”. A Academia é uma máquina estranha que transforma tudo em papel. Muitas vezes se perde o contato com a “realidade”. Aquele convite que fiz aos alunos e alunas foi abraçado com muita alegria por eles. Depois, consultando-os de forma anônima a enorme maioria afirmou que teve que estudar mais para fazer aquele tipo de trabalho do que faria no caso do tipo tradicional.
Tudo isso me faz lembrar o grito de guerra das barricadas de maio de 68, quando a juventude francesa disse não em alto e bom som à caretice retrógrada das instituições. Eles gritavam, com prazer: “A imaginação no poder”.