/A profissão do Julio César

A profissão do Julio César

A PROFISSÃO DO JULIO CÉSAR

Quando comecei a ir a Acari para fazer meu trabalho de campo eu era visto como uma espécie de E.T. Considerado branco histórica e sociologicamente, professor, de classe média, morador da distante Tijuca e ainda por cima usando pastinha e óculos de intelectual. Logo ganhei o irônico apelido de Super-Homem, depois que se dissiparam as suspeitas de que eu fosse policial ou repórter.

Não fiz nada de excepcional para ser aceito. Apenas disse claramente quem eu era e o que viera fazer ali. Não prometi nada, até pelo contrário, avisei que eles não deveriam esperar que o meu trabalho viesse a representar a possibilidade de uma melhora para a localidade, pois isso não dependia de mim. Minha aceitação passou primeiro por duas pessoas que me apresentaram ao grupo.

Mas houve outro fator que ajudou em muito a minha “entrada”: o futebol. Pude entrar no circuito de brincadeiras masculino a partir do fato de ser torcedor, no caso do Flamengo. E das duas uma, ou eles torciam para o Flamengo ou odiavam o Flamengo. O que em termos de “gozação” é excelente. Uma das coisas mais características da favela, pelo menos em se tratando do mundo masculino, é essa atmosfera de permanente desafio jocoso.

Depois de um certo tempo aprendi a fazer brincadeiras também. Deley de Acari, o poeta, é uma pessoa que sabe muito, tem uma experiência de vida riquíssima e é um intelectual admirável. Por isso, era comum, no meio de uma conversa da rapaziada, ele interromper para dar uma explicação de como aquilo surgira, coisa e tal. Eu aproveitei a oportunidade e toda vez que ele fazia isso eu cantarolava a música do Raul Seixas:

“Eu nasci, há dez mil anos atrás,

E não tem nada nesse mundo,

Que eu não saiba demais.”

Mesmo depois de terminado o trabalho de campo, fui convocado a Acari para receber minha carteirinha da “Cornolândia”, com direito a número e tudo. Antes que eu protestasse, o presidente me explicou:

– Nem adianta querer negar, todo mundo é corno.

Claro que isso só se dá no círculo de amigos e conhecidos, pois é uma prova da força dos laços existentes. Uma vez vi dois grandes amigos, um deles dizendo, na casa do outro, que comia muito a mãe deste. E aí piscava pra mim como se dissesse: “Tá vendo como somos amigos?”.

No meu caso, não era louco de fazer brincadeiras deste tipo, me restringia ao comentário futebolístico, sobretudo com quem torcia contra o Flamengo. Havia um sujeito enorme, mais alto que eu e forte como um touro, torcedor do Botafogo. Eu nunca soube o nome dele, mas cismei de apelida-lo de Julio César, um zagueiro de porte físico imponente que defendeu o Brasil na Copa de 1986. Assim, toda vez que o encontrava era aquela coisa:

– E aí, Julio César, teu Foguinho vai mal, hein?

– Melhor do que o teu Menguinho.

Não havia vez que o visse em Acari que não falasse com ele e o chamasse de Julio César.

Um dia, com um risinho no canto da boca, meu amigo Deley de Acari, o poeta, chega perto de mim e pergunta:

– Você sabe qual é a profissão do Julio César?

– Assaltante profissional.

Continuei avistando o “Julio César” e brincando com ele acerca do Botafogo. De uma maneira mais moderada, digamos…