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Adeus, Spotify

ADEUS SPOTIFY

” Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro.”

Riobaldo em Grande sertão: veredas

O bom e velho companheiro estava largado. Eu o havia comprado em um Ponto Frio da vida. Durante anos, foi aquele rádio-gravador-aparelho de CD que alegrou minhas aulas em Niterói. Repressão à população afro-brasileira na Primeira República? Lá ia ele tocar “Batuque na cozinha”. E muito mais: o jingle da campanha de Jânio prometendo varrer a corrupção ele tocou, mas acho que ele preferia o samba-enredo de Padeirinho em homenagem a Getúlio Vargas ou quem sabe Bob Dylan explicando a globalização. Para ele não havia tempo ruim: tocava as entrevistas do curso de História Oral desde o tempo em que eram gravadas em fitas até o novidadeiro CD. Ali ouvimos a voz da Missionária contando sua vocação, professores explicando sua trajetória profissional, imigrantes portugueses contando a aventura das suas vidas, sambistas, quilombolas… O bichinho serviu para contar muitas histórias. Tem mais de quinze anos e nunca pifou.

Mas sabe como é a vida. Logo surgem as novidades: IPad, IPod, caixas acionadas via celular e finalmente os famosos sites de música como Accuradio, Spotifiy e outros. Eu terminei meu tempo em Niterói e trouxe o velho 3em1 comigo. Primeiro ele ficou meio encostado. Mas depois comecei a perceber que esse negócio de ligar o computador para ouvir música é um tiro no pé. Aquilo é uma fera sem controle, impossível de botar na coleira. O computador te distrai no pior sentido do termo, ele logo te suga para um buraco negro qualquer: um email, uma mensagem do Facebook e por aí vai. Quando eu via, nada de ouvir música. E viver sem música…

Guerra é guerra. Resolvi radicalizar. Abri uma das caixas com CDs e comecei a ouvi-los como se fazia antigamente: primeiro se olha pra caixinha, dá-se uma checada na lista de músicas e, por fim, basta depositar o CD, fechar a tampa do aparelho e apertar o botão de play. Um breve ritual. Depois é só ouvir o CD todo, música por música, na ordem original, pois assim havia pensado o compositor ou compositora. Estou sendo fiel à obra de arte. Fiz uma faxina hoje toda nessa base, ouvindo meus bons e velhos cds: Caetano cantou seu Cinema Transcendental duas vezes porque eu estava com muitas saudades, Legião Urbana lembrou as Quatro Estações dos meus desenganos amorosos e para escrever esta crônica escalei o bom e velho Chico Buarque e seu antológico Meus Caros Amigos. Na capa tem o Chico dando um sorriso de fechar comércio, indústria e tudo mais e que eu coloquei nesta postagem porque sou amigo de vocês.

O próximo passo será comprar uma vitrola e desencaixotar meus LPs, há ali todo um tesouro a re-descobrir. Dylan, para lembrar da adolescência fora do mundo. Stones para reviver aquela festa em que dancei até o sol nascer. Cartola e a descoberta do samba. Bread e aquelas músicas que se dançavam com o casal agarradinho. Billy Paul cantando  Your Song e a turma toda correndo pra pista. Paulinho da Viola ensinando delicadeza com poesia e vice-versa. Eles que me aguardem. Não é saudosismo. Esquecer é perder-se. E como dizia Riobaldo: “o que lembro tenho”. É que a memória precisa de suportes, objetos, locais, cheiros, músicas. Memória não grava endereço de site, memória não cabe em disco rígido nenhum. Memória não funciona à base do algoritmo.

Estou feliz da vida com tanta música. Por isso é que eu digo, com toda a alegria:

Adeus, Spotifiy.

E quer saber? Vou tocar o Chico de novo que ele merece.