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Aventura no fundo Rosa

AVENTURA NO FUNDO ROSA

Imaginem soltar uma criança numa loja de brinquedos absolutamente gigantesca. E dizer a ela que poderá mexer em tudo, olhar, tocar, só não vai poder levar nada pra casa. Foi assim que me senti, pesquisando o Fundo João Guimarães Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros, na USP. Fui até lá movido pelo desejo de aventura intelectual, de descobrir um pouco mais acerca desse grande mistério chamado Guimarães Rosa.
Fui muito bem recebido por uma equipe tão simpática quanto competente e fiz um brevíssimo cadastro. De repente tinha que escolher entre quase dez mil documentos: cartas, fotos, recortes de jornais, contratos profissionais, convites, cardápios de jantares a que ele foi e até originais datilografados. Meu Deus do céu! Originais datilografados e cheios de anotações, cortes e acréscimos feitos à mão pelo próprio. Não teve jeito, comecei por aí. Fui para onde minha intuição apontou.
Comecei com 40 páginas já amareladas que guardam “A hora e vez de Augusto Matraga”, a saga de Nhô Augusto Esteves. Considerado por Antonio Candido um dos melhores contos da língua portuguesa. Na minha modesta opinião, é um prelúdio a Grande sertão, ou, se preferirem, um estudo inicial. No original de “A hora e vez”, Rosa suprimiu muita coisa, quase sempre riscando com uma pilot vermelha. Mas há trechos riscados em roxo. Há instruções sobre o espaço a deixar para as epígrafes e citações. Há acréscimos à lápis. E pedaços de papel colados à folha, para corrigir determinados trechos. Algumas vezes há palavras escritas à margem em letras maiúsculas, talvez para alertar o revisor que era aquilo mesmo que ele queria escrever: “DESVENCIDO”. Fiz uma leitura breve, mas me pareceu que as modificações ocorriam sobretudo para tornar o texto mais informal e mais regional.
Depois ataco um livro de recortes de lombada vermelha. Cheio de tesouros. Como um receituário médico do Dr. João Guimarães Rosa, que coloca como especialidades a clínica geral, a pediatria e “moléstias das vias urinárias”. E que tal essa notinha no jornal de Barbacena onde ele estava lotado como capitão-médico da Força Pública de Minas Gerais antes de passar no Itamaraty:

“DESPEDIDA
O Dr. João Guimarães Rosa, ausentando-se desta cidade, afim de assumir o cargo de cônsul de terceira classe, para o qual acaba de ser nomeado, pede por nosso intermédio aos seus numerosos amigos o obséquio de o desculparem por não lhe ter sido possível despedir-se, pessoalmente, de cada um deles.”

Isso é que é ser diplomata, não é? Mas Rosa sempre teve bons amigos e há muitas provas disso. Há um que lhe escreve em latim, chamando-o de Johannes. E temos o outro amigo que intercedeu por ele para que saísse logo sua nomeação para trabalhar no Serviço de Saúde da Força Pública.
Sabemos muito bem que Rosa era um homem místico, estudioso, entre outras coisas, da tradição da alquimia e da cabala. Mas é delicioso encontrar um pedacinho de papel com a letra dele e todos os signos do horóscopo e suas datas anotados à caneta. Por falar nisso, ele era Câncer com ascendente em Libra.
De repente, um recorte de arrepiar. Todos conhecem a história de como Rosa morreu três dias depois de proferir seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em novembro de 1967. Evento que ele adiou por quatro anos. Por isso é incrível encontrar este recorte de jornal mencionando o primeiro discurso que Rosa fez na ABL, trinta anos antes, em 1937, quando foi receber o prêmio por seu livro de poesia Magma. Em O Jornal, aparecem trechos desse discurso em que ele reflete sobre a condição do artista:

“A satisfação proporcionada pela obra de arte aquelle que a revela é dolorosamente ephemera: relampeja fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tacteia formas novas para a exteriorização do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e de um quase arrependimento. Pinta a sua tela, cega-se para ella e passa adeante.”

O quadro de um escritor sempre à procura de “novas formas”. O que fazer da informação de que Rosa foi sorteado em agosto de 1957 para ser jurado no 2o. Tribunal do Júri? Como não se por a pensar em como ele deve ter se sentido diante da tarefa de julgar uma outra vida e dar um destino a ela? Acho que daria um bom conto de Borges.
Resolvo então partir para as fotos. Não são muitas, pude examiná-las todas em um par de horas. As dele menino ou já escritor famoso, não irei comentar por muito conhecidas de todos. Mas o que me chamou atenção foram as dúzias de fotos de bois. Um boi bem de perto, olhando para o fotógrafo. Bois no curral. Bois no campo. Pastando. Descansando. Bois em movimento. Um bezerrinho se equilibrando com dificuldade nas quatro patas. Boiada sendo tocada por vaqueiros. Bois de todos os tipos e pelagens. Confirmando aquilo que o próprio Rosa disse, de que aprendera muita coisa com os bois e os cavalos. Afinal se trata do autor do antológico “Conversa de bois”.
Mas há também fotos inesperadas de animais: de um camelo e até de uma lontra. O outro conjunto significativo de fotos não tem um tema tão doce. São fotos de Hamburgo antes e depois da destruição causada pela guerra. Guimarães Rosa foi consul lá e esta experiência deve tê-lo marcado fortemente, como se percebe em Grande sertão: veredas, quando Riobaldo diz ao doutor:

“Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente”

O que mais me emocionou e atingiu neste primeiro e maravilhoso dia de pesquisa, foi um breve conjunto de cartas. Trocadas entre Rosa e seu grande amigo Álvaro Lins, um crítico literário de renome e que naquele ano, 1953, residia em Portugal. Foi aqui que pude respirar um pouco do ar do homem humano Guimarães Rosa. Em uma carta datada de 29 de janeiro de 1953 ele diz ao amigo o que lhe interessa, a “vida ‘verdadeira'”:

“Já estive com o Mestre Aurélio, que chegou vitaminado e possante. Foi um prazer ouvi-lo falar de vocês, contar como estavam, e viviam e falavam, aí, tão perto, na boa Lisboa. A casa de vocês – que espero ainda poder ver, em longos serões após o desvanecedor oxinxim de galinha – me deu inveja: quintal e jardim! Mas Teresinha e Pedro bem o mereciam. Sempre que você escrever, conte-me coisas de sua vida ‘verdadeira’: leituras, passeios, comidas, aventuras do Pedro, conversas de vocês, paisagem doméstica, cenas e casos que matam saudades.”

Modestamente, chama a redação de Grande sertão: veredas de “escrevinhação”, pedindo desculpas ao amigo pela demora em responder. Mas garante: “vocês sabem que a amizade é invariável”. As cartas de Rosa, ao contrário das de Lins, são todas datilografadas propositalmente, para fazer cópia.
É um Rosa extremamente caloroso que aparece nessa correspondência. Em 9 de março ele envia carta a Álvaro Lins parabenizando o amigo pelo sucesso de uma aula inaugural e depois de enviar um “abraço possante”, completa, de forma veemente:

“Senti não estar aí, entre os assistentes, para inchar as mãos no aplaudir e me ‘esbagaçar’ nos festejos que se seguiram à triunfal cerimônia.'”

Por fim, o Rosa que apreciava as brincadeiras de criança, as coisas simples da vida, incluindo as delícias gastronômicas:

“Mas, houve também a outra carta, a que eu pedira, e achei-a uma delícia. Aracy também. Lemos e relemos, ficando a imaginar vocês aí, nesse bom e sólido ambiente português, placidamente, com lareira e quintal, opulentas bacalhoadas, marmeladas de Oudivellas, ovos-moles do Aveiro, Leiría e Cacilhas, e o alvaralhão, os amigos simpáticos, o território eciano… Sempre que puder, escreva notícias assim. Guardarei as cartas, para publicá-las mais tarde. Mas a fraternal e afetuosa alegria que delas retiramos é atual, viva, presente. Ah, antes que passe: achamos uma grande ideia Teresa ter entrado para uma escola de ballet. Notável: quanto ao Pedro – cidadão promissor – resumo tudo neste slogan: – Dêem botas ao Pedro!”

Para uma primeira visita, fiquei muito feliz, até mesmo por saber que ainda há muito a pesquisar e a descobrir. O pouco que vi e li já me permitiu ter a impressão de estar Proseando com o Rosa. Enquanto eu não voltar, modifico uma frase do Rosa em uma carta a Álvaro Lins quando ele diz: “Pensando em vocês com boas saudades”. Pensando em você com boas saudades, João Guimarães Rosa.