BOB MARLEY, SURF E BATATA FRITA
Trindade. Era uma vez uma comunidade tradicional de pescadores vivendo em um dos trechos mais lindos do litoral brasileiro, as praias do sul do Estado do Rio de Janeiro, quase na divisa com São Paulo. É uma região de mata atlântica, com cachoeiras além de onze praias paradisíacas. Até o início da década de 1970 viveram em relativa paz e isolamento. Isso acabou com a construção da Rodovia Rio-Santos.
Logo apareceu uma companhia multinacional dizendo-se dona daquelas terras, onde ela queria instalar um complexo turístico. A Companhia Paraty de Desenvolvimento Turístico tinha 60 homens armados em Trindade. Os habitantes foram agredidos fisicamente, tiveram plantações e casas destruídos e duas professoras da localidade foram estupradas. Mesmo assim resistiram e depois de nove anos conseguiram afastar a ameaça representada pelos invasores. Foram ajudados pela Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro e pelo lendário jurista Sobral Pinto, que conseguiu o direito de permanência para 42 famílias em 1982. Houve também apoio na imprensa alternativa, como O Pasquim, que dava constantemente notícias acerca da luta dos pescadores de Trindade.
Até aquele momento, Trindade era visitada quase que exclusivamente por hippies, fascinados com a beleza e o isolamento da vila. De início, mesmo acessível pela Rio-Santos, havia alguns quilômetros de estrada de terra em um caminho de subidas e descidas íngremes e curvas sinuosas. Além disso, como no poema de Drummond, havia uma enorme pedra no caminho, junto ao mar, onde ainda por cima corria um riacho, dificultando a passagem de automóveis e ônibus.
Agora a estrada foi bem asfaltada e parte da pedra foi cimentada para facilitar a entrada e saída de veículos. Finalmente Trindade já desfruta de todas as maravilhas da civilização, inclusive o engarrafamento. No feriadão de N.Sra. de Aparecida as ruas estavam tão apinhadas que era preciso caminhar com cuidado para não pisar no pé de alguém. As trilhas que levam de uma praia a outra pareciam uma reedição do garimpo de Serra Pelada, com gente subindo e descendo sem parar.
Um dos lugares mais bonitos é a piscina natural do Cachadaço. É uma obra-prima que a natureza demorou milhões de anos para fazer. Uma área circular toda cercada de pedras, onde entra água do mar formando uma piscina impecável, com direito a ouvir e ver o mar batendo nas pedras. Um cenário de filme e uma atração natural que deveria ser preservada, com a restrição do acesso, com um mínimo de controle à predação humana.
Ao invés disso, havia uma multidão comendo, bebendo, jogando lixo por todo lado, uma cena infernal. Só para ter uma ideia: vi uma moça com sua filhinha no colo cercada de peixes tigrados. Seria muito bonito se não fosse um detalhe: o que atraía aquela multidão de peixinhos era a batatinha Ruffles que a moça despejava nas águas. Acho que não é preciso dizer mais.
Na vila propriamente dita, há uma profusão de lojas de artesanato, com predominância de temas ligados ao surf e a Bob Marley, tão retratado que parece até um santo padroeiro. Há dezenas de imagens diferentes do jamaicano em camisas, bonés e sobretudo em cangas. Nas areias, mais da metade das pessoas sentam seus bumbuns no rosto de Marley, que honra. Logicamente, ele é associado à erva, remetendo aos hippies e também aos surfistas. A síntese perfeita foi uma pequena imagem de Bob Marley, prancha de surf num braço e com a outra mão dentro do calção literalmente coçando vocês sabem o que.
Aquilo que o capitalismo internacional não conseguiu fazer de uma tacada só, o turismo selvagem está conseguindo fazer e não tão lentamente assim: transformar Trindade em uma paródia fake de si própria.
Bob Marley virou um surfista comedor de batatinha frita em pacote. Como antídoto, os versos do próprio em Redemption Song:
“Libertem-se a si próprios da escravidão mental
Ninguém exceto vocês mesmos pode libertar suas mentes”
E vão sentar suas bundas na cara de outra pessoa.