CANETA VERMELHA
Aquele garoto com vinte e quatro anos, três semanas e dois dias não estava preparado para entrar na sala de aula no dia 23 de outubro de 1984. Ninguém está. O professor nasce em sala de aula. Cresce com os erros, caso sejam humildemente reconhecidos. Melhora lentamente à medida em que adquire não somente mais saber, o que é uma pré-condição, mas sobretudo mais sensibilidade para medir a temperatura da aula, para tentar sintonizar a mente com a turma e para tentar compreender cada aluno ou aluna.
Aquele tal de Marcos Alvito estava ainda muito cru e toda a ajuda era bem vinda. Ele tinha uma aluna que devia ser ao menos dez anos mais velha do que ele e já era professora do que hoje se chama Ensino Básico. Ela gostava da aula dele, embora ele percebesse também certos olhares que pareciam dizer: “não é bem assim”. Um dia, depois da correção das primeiras provas, ela o interpelou com muita simpatia e sobretudo com extrema gentileza. Chamou atenção para um detalhe prosaico e aparentemente pouco significativo, mas muito importante: o uso da caneta vermelha. Docemente explicou que as anotações em vermelho estabeleciam uma oposição entre aluno e professor, enfatizavam o erro e não a aprendizagem, em um tom violento de censura. O garoto ouviu com atenção e espanto. Agradeceu muito e nunca mais comprou ou usou uma caneta bic na vida.
Outro mestre importante foi um aluno bem jovem e muito inteligente. Só que ele ainda não estava acostumado com certas características da universidade. Seus primeiros trabalhos, considerados ruins, foram criticados, mesmo sem caneta vermelha, com muita dureza. Anos depois, quando ele se tornou orientando de monografia e também meu amigo, ouvi uma confissão inesperada: aquelas primeiras críticas quase fizeram com que ele abandonasse o curso. Desta vez, mais do que espantado, fiquei triste.
Depois disso, procurei ser o mais delicado possível nas minhas observações críticas. Ao invés de escrever “Há sérios problemas de redação”, passei a anotar “A redação ainda pode melhorar muito”. “Uma melhor estruturação poderia tornar o seu trabalho mais organizado e coerente” veio a substituir algo como “O trabalho está desorganizado e caótico”.
Mestre Ciro Cardoso comentava com aquela sua ironia típica que o único momento em que duvidava da sua vocação era quando era obrigado a corrigir os trabalhos. A palavra “corrigir”, aliás, já denota o viés algo punitivo do processo. Passei a adotar um ritual de correção. Depois de uma noite bem dormida e de um bom desjejum, ia para algum lugar agradável e bem iluminado, muitas vezes um café. Lá eu lia e anotava observações em um número limitado de trabalhos, parando no momento em que começava a ficar cansado. Era o momento de uma importante reflexão acerca de todo o processo de aprendizagem, o que incluía, também, as minhas falhas.
Como em todas as relações humanas, não podemos saber o que o outro irá entender do que dizemos. Professores e professoras, além disso, carregam o peso da palavra autorizada, santificada até certo ponto. Por isso, todo cuidado é pouco. Devemos ter como máxima as palavras de Riobaldo no Grande sertão: veredas:
“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”