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Cavalinho azul

CAVALINHO AZUL

A primeira lembrança que tenho da escola é brutal. Devia ter uns cinco anos e nas primeiras semanas chorava sem parar, inconformado em deixar o aconchego do carinho materno e da casa para ser largado naquele lugar desconhecido. Hoje dá até para lembrar de parte da letra de Eduardo e Mônica, quando ele diz “festa estranha, com gente esquisita, eu não tô legal”. Minha mãe tinha que aparecer na hora do recreio quando eu tentava em vão abraçá-la por cima de uma cerca de metal.

A hora do recreio, aliás, era uma tortura. Para começar, naquele pátio gigantesco, aos olhos de uma criança pequena, eu não tinha um só amigo, um só conhecido. Mas isso não era o pior. Era um colégio de freiras e uma delas, não sei por que motivo, achava minhas orelhas muito bonitas. Sempre que me via, apertava minhas orelhinhas com demasiada força. Deve ser por isso que até hoje não gosto de filmes de terror: aquela expectativa quanto ao mal que sempre virá…

Claro que a escola é uma máquina de domesticação dos corpos e das mentes, sobretudo a escola de cinquenta anos atrás. O processo era duro. Até hoje me lembro de um colega, chamado Artur, que experimentou uma vergonha inominável. Ele pediu à professora, uma das freiras, para ir ao banheiro. Pediu várias vezes, desesperadamente, inutilmente. Até que sua necessidade se consumou em sala, com um odor que denunciava a todos o fato. Só então o pequeno Artur recebeu a permissão para ir ao toalete.

É claro que na maior parte do tempo o adestramento era mais sutil. Como éramos crianças muito pequenas, cheias de vida, alegria e inquietude, tínhamos que aprender as maravilhas da imobilidade, nossos corpos haviam que ser neutralizados minimamente, para o bem do “processo educativo”. Sendo assim, nossa professora estabelecia um horário da soneca, quando todos devíamos deitar nas nossas esteirinhas e dormir como se anjinhos fóssemos. Para estimular aquela auto-contenção, havia um prêmio para quem ficasse mais “quietinho”: um singelo cavalinho de plástico. Era pequeno, era azul. E eu o desejava com toda a força, menos por seu caráter de prêmio e mais por seu caráter de brinquedo. Claro que nunca o ganhei. Inquieto que só, ficava tentando dormir sem conseguir e no meio da “soneca” levantava a cabeça para ver se meus competidores e competidoras estavam tão quietos quanto eu. Quando a professora anunciava o ganhador ou ganhadora, ficava profundamente decepcionado e não entendia o motivo pelo qual nunca era escolhido.

Muitos, muitos anos depois, tendo feito uma pesquisa e escrito um livro sobre a Favela de Acari, recebo um convite da Faculdade de Educação da universidade na qual trabalhava. Era uma comemoração importante, para celebrar não sei quantas décadas da instituição. Eu teria a honra de proferir a palestra inaugural. O tema, escolhido pelo diretor, era “A violência na escola”. Decerto ele pensava que eu poderia falar da questão do tráfico de drogas etc e tal. Topei.

No dia da palestra, auditório cheio, diretor todo engalanado, comuniquei uma pequena mudança no título. Ao invés de falar da violência NA escola, decidira falar da violência DA escola. Creio que o público não estava preparado para ouvir observações sobre a violência simbólica que é cometida diariamente contra alunos das camadas economicamente mais pobres da sociedade. Mencionei a desqualificação total da cultura popular, do saber local, das tradições. Apontei o racismo e a fria indiferença, quando não ojeriza de muitos professores diante de uma juventude que eles consideram sem futuro e contribuem para que sua profecia se realize. Exemplifiquei o tratamento desumanizado de que são vítimas, em “chamadas” em que o nome do aluno ou aluna não é mencionado, somente seu número. A Faculdade de Educação, em peso, assistiu chocada ao que deveria ter sido uma palestra celebratória e acabou sendo o contrário.

Pensando bem, acho que foi ótimo jamais ganhar aquele cavalinho azul.