DIÁRIO DA CIDADE 003
Acari é o nome de um peixe e de um rio no sertão mineiro. Mas a minha Acari é outra, a favela, grife de dor e violência em meados da década de 1990. Sempre foi e continua sendo, uma das áreas mais desassistidas e mais pobres economicamente da cidade de São Sebastião.
Lá desenvolvi um trabalho de campo que se tornou tese de doutorado na USP e em seguida o livro As cores de Acari. Ao longo dos anos, visitei os conhecidos e amigos que lá fiz de tempos em tempos.
Hoje, depois de alguns anos, voltei. A coisa mais espetacular na favela é a sua banalidade. É, por um lado, um lugar como outro qualquer no mundo. Ali as pessoas moram e procuram viver da melhor forma possível.
Chegando cedo, sento na padaria para tomar um café com pão na chapa. E fico vendo as mães levarem os filhos até a escola. Enquanto isso, a televisão oferece seu cardápio de horrores: sargento assassinado na Zona Norte, menina de quatro anos baleada na cabeça quando ia comprar pipoca com a mãe…
A rua de entrada, mais próxima do “asfalto” e do transporte, é a que concentra mais comércio, com muitos bares, lanchonetes, mercearias e até um supermercado. A academia de ginástica, que antes era em cima da padaria, agora é toda envidraçada, poderia estar em qualquer bairro da cidade.
Claro que as anormalidades não demoram a aparecer: o grosso tronco atravessado na rua para atrapalhar a entrada dos carros da polícia, as máquinas de caça-níqueis, sinal de um acordo do tráfico com a milícia, o jogo do bicho ou os dois.
Nem sinal dos “meninos” até dobrar uma esquina e lá estão: walkie-talkies, revólveres, talvez pelo horário não estão com a artilharia pesada à mostra. Pensei que fosse sofrer o interrogatório de sempre – eles cismam que sou policial civil, mas me deixaram “passar batido”, agora sou um coroa de cabeça branca.
Chego finalmente ao sacolão do meu amigo. Ele tinha ido no Ceasa, às 5 da manhã, encomendar as mercadorias. Sua irmã já estava lá, ficamos conversando animadamente sempre no tom de brincadeira, eu reclamando que nem tinha sido parado na boca, estava mesmo com cara de velho.
Lá vem ele. Costumo brincar dizendo que ele é meu caçula, porque nasceu cinco dias depois de mim. Só que nossas histórias são muito diferentes. “Branco”, de classe média, pude me dedicar aos estudos. A trajetória dele, negro, vivendo com a mãe e mais cinco irmãos em um barraco de madeira e chão de terra, foi muito diferente. De início a família sobrevivia do lixão. Meu amigo acabou sendo levado para a FUNABEM e encaminhado a uma unidade agrícola, onde os menores eram submetidos ao trabalho forçado. no campo. Ele fugiu em um caminhão e voltou para Acari.
Nos conhecemos em 1995, quando ele era líder comunitário e eu era o pesquisador vindo de fora. Ele acreditou nas minhas boas intenções por eu ter me apresentado e fornecido meu endereço. Sem eu saber, ele me protegia: nascido e criado dizia a todos, sobretudo aos bandidos que ficavam nervosos com a presença de alguém desconhecido, que ele punha a mão no fogo por mim.
Hoje vim a Acari para vê-lo, sobretudo para isso. Avisei meses antes que iria lhe dar um abraço – ele não gosta dessas coisas. Mas até que aceitou bem o sacrifício do abraço apertado que lhe dei.
Ele está mais gordo e também mais feliz. Pareceu tranquilo, em paz e conversamos enquanto ele descascava aipins com uma facilidade impressionante. Brinquei com ele: se fosse do bando de Lampião seria escalado para cortar orelhas.
Ingressou em uma igreja, se batizou e diz que foi assim que sua vida voltou aos eixos. Antes botafoguense fanático, com perdão da redundância, agora nem vê mais partidas de futebol. É claro que não bebe e, tendo se separado, não demonstra nenhuma pressa em ter outra companheira.
Em meio a nossas brincadeiras, um dos “meninos” aparece com um pedaço de pau na mão, dirigindo-se a uma esquina. Meu amigo e sua irmã se entreolham. Ela ainda diz baixinho: — Acho que alguém vai apanhar.
Ele reclama que fiquei muito tempo, mas eu volto para casa. Pego o bonde e nele venho pensando porque pessoas decentes e trabalhadoras têm que viver em meio a um inferno criado pelo tráfico internacional de drogas e armas, pela corrupção policial e pelo abandono da juventude pobre sem expectativa.
Não tenho religião, mas é fácil entender porque a religião possa ser necessária para que um mundo sem sentido faça ao menos o sentido suficiente para que se tenha força para viver.
Ao chegar em casa mando uma mensagem brincalhona e meu amigo rebate dizendo que troquei de lugar com meu filho e fiz a ele uma visita de médico.
Realmente, quando cheguei lá ele tentou me irritar chamando de professor, embora eu sempre tenha dito que estava em Acari para aprender e que não estava ensinando nada a ninguém.
Mas, uma hora em que ele estava distraído, me chamou de irmão.
E não há título, honraria ou comenda maior.