DOIS CUBINHOS DE AÇÚCAR ROSIANO
“Sal que eu comi, só”. Assim se expressa Riobaldo para dar conta do desgosto que sentia naquele momento em que seu mentor e amigo Zé Bebelo estava sendo julgado e tudo parecia se encaminhar para uma condenação à morte. Ao fim e ao cabo isso não ocorre, mas essa é outra história.
Hoje eu quero falar de dois cubinhos de açúcar que adoçaram meu coração 6.0 em meio a tempos tão salgados.
O primeiro veio no dia de abertura do Curso introdutório à leitura do Grande sertão: veredas. De início o meu propósito era fazer um curso integral, como o que dou na 2a. feira, lendo e comentando cada passo do livro, fazendo a travessia do sertão rosiano do início ao fim.
Mas houve poucos inscritos e algumas pessoas disseram que não teriam mais de um ano para ler o livro. Foi aí que preparei outra proposta, de um curso em 12 aulas. Pois bem. No primeiro dia de aula, depois de uma horinha de caminhada pelo Grande sertão e suas veredas, mais de uma aluna disse que estava arrependida, que agora queria, sim, ler o livro inteiro, não importando o prazo. Depois que dermos o curso introdutório veremos como fazer. Mas o mais importante não é isso e sim a capacidade que o livro tem de tocar as pessoas, de encantá-las, de convencê-las de que estão diante de algo desconhecido, que nunca viram antes. Foi este o primeiro cubinho de açúcar.
O segundo veio relendo “O Burrinho pedrês”, primeira novela de Sagarana, primeiro livro de Guimarães Rosa. Vou deixar de lado todas as comparações que fiz com o Grande sertão e que talvez outro dia publique aqui. Vou direto na parte doce. Na novela há um Major Saulo, típico proprietário de terras do sertão, criador de gado, homem que fala grosso, que emana autoridade e controla seus vaqueiros com mão de ferro. Diz o narrador que era capaz de mandar um boi bravo ir de castigo apenas com um olhar. É um homem que parece só falar através de provérbios, de pensamentos feitos. Até aí, apenas o esperado.
Mas os personagens de Rosa quase nunca são unidimensionais. E o Major tinha um outro lado, a começar por olhos verdes misteriosos. Era um homem intuitivo, que não entendia só de bois, mas também de homens. E há uma outra característica, ainda mais notável e inesperada.
Na novela, o Major Saulo, que é analfabeto, adora receber cartas e fotos da mulher. E não pede para ninguém ler as cartas, pois não queria compartilhar as palavras que a mulher dirigiu a ele. Fica olhando, apaixonado, enlevado, para as letras no papel. Só mesmo o Rosinha para criar um personagem que, mesmo sem saber ler e talvez por isso, conhece a força mágica das palavras.
Quando fui para a aula, os dois cubinhos, marotos, haviam se fundido e transformado numa calda doce que recobria meu velho coração.
Se não há esperança, que se invente.
E nada melhor do que a literatura para isso.
(Marcos Alvito)