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Doval

DOVAL

 

Ele era o herói improvável de uma torcida simbolicamente negra, pobre e desdentada. Horacio Narciso Doval era louro e argentino. Trocara Buenos Aires e a grande chance de vestir a camisa da seleção argentina para jogar no Flamengo e ser carioca, daqueles que adoram praia: vivia bronzeado. Dentro de campo é que se pode entender o amor à primeira vista entre o gringo e a torcida rubro-negra. Seu pai, assim como aconteceria com ele, morrera cedo, de ataque do coração. Talvez por isso, jogava como se fosse morrer antes do apito final. E como jogava! Estufava as redes adversárias com raiva e amor. Mas principalmente, vivia e jogava com alegria. A massa do Mengão só podia ser apaixonada por ele.

 

Ele era tão carioca que recusou uma boa oferta para jogar na França, dizendo que lá fazia muito frio e que Paris não tinha praia. Depois de se naturalizar, em 1976, dava entrevistas que começavam assim: “Nós, brasileiros…”. Fora de campo, era gentil e brincalhão. Pinta de galã, era bastante paquerador o que lhe causava alguns problemas: certa vez teve que sair da praia nadando Oceano Atlântico adentro para fugir de um marido ciumento e seus amigos.

 

Os cabelos longos eram uma marca registrada de rebeldia quando chegou à Gávea em 1969, logo no período mais duro da Ditadura Militar. No ano seguinte, Yustrich, um técnico “disciplinador”, exigiu que ele cortasse os cabelos. O “Diabo Louro”, como Doval era chamado, peitou o monstro e não aceitou a ordem. Como punição foi emprestado a um time argentino e só voltou em 1972 para fazer uma dupla incrível com um garoto franzino mas muito bom de bola chamado Zico. El Loco Doval infernizava as defesas com técnica e ímpeto e abria caminho para seu parceiro. Em mais de uma maneira: reza a lenda (ou as más línguas) que Sandra, a futura mulher de Zico, só veio a conhecê-lo porque ia à Gávea ver Doval de perto. Era apaixonada por ele.

 

Eu também. Não era louro nem argentino mas usava cabelos longos para desgosto da família. Garoto, com 13, 14 anos, tentei treinar basquete no Flamengo, seguindo os passos do meu pai. Um dia estava com outros moleques batendo uma bola no ginásio. O ginásio dava acesso ao gramado da Gávea, onde a equipe principal treinava. E quem vinha lá com a cabeleira esvoaçando? Ele mesmo: Doval. Ficamos parados, como se um deus tivesse aparecido naquela quadra. Ele não se perturbou. Aproveitou para tomar a bola da minha mão, quicar algumas vezes e tentar uma cesta. Perdeu. Depois se virou, lançou a bola de volta e me deu um sorriso de criança levada. Os olhos, brilhavam. Nunca me esqueci.

 

Como estava escrito, Horacio Narciso Doval morreu aos 47 anos, de infarte. Saía de uma boate em Buenos Aires onde comemorou uma vitória do nosso Flamengo.

 

Obrigado, Doval.