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Guarabira é a resposta

Guarabira é uma cidade da Paraíba, a 98 quilômetros da capital, João Pessoa. Tem cerca de 60 mil habitantes. Para os geógrafos, fica no agreste. Já o povo a chama de Rainha do Brejo, porque chove com regularidade e há bastante água. O enorme sapo que vi saltitando alegremente pelos corredores da Universidade Estadual da Paraíba e o verde dos campos me inclinaram para a opinião do povo.
Ao chegar já se vê a casa do homem mais rico da cidade, localizada bem no alto de um morro e que pode ser avistada de todo lado. Aqui embaixo ele também está presente: é a criação de aves, base da economia do município, é o posto de gasolina e muita coisa mais.
No centro da cidade, o comércio tradicional do Mercado Municipal agoniza a olhos vistos com suas barracas abandonadas e ausência de clientes. É que agora o povo prefere ir no shopping, me ensina um experiente motorista de táxi. E o shopping pertence a quem? Isso: ao homem mais rico da cidade. Tem até cinema, sempre cheio segundo meu guia.
O velho motorista me leva até outra montanha, ainda mais alta e imponente, onde está localizada uma estátua gigantesca de Frei Damião, falecido em 1997. Aos sábados e domingos há um formigueiro de gente e romarias de lugares distantes são comuns. Entramos no santuário onde há um quadro com pensamentos do Frei, que era italiano e veio para o Brasil aos 33 anos. Casamento se não for na Igreja não tem validade. É indissolúvel. O adultério é o pior dos pecados juntamente com as técnicas para evitar ter filhos. Basta se abster da conjunção carnal, simples assim. Lá dentro também descubro existir uma água mineral Frei Damião. Padre Cícero está um passo à frente ou alguns graus de álcool acima, pois mais tarde vou achar um vinho com seu nome no mercado.
Antes de chegar à santa montanha, o motorista me indica (sem eu pedir) onde ficavam os dois “cabarés” mais famosos da cidade. E comenta:
– Um deles era de um viado que toda semana trazia novas mulheres. Não sei onde ele arranjava tanta mulher.
Já onde ele conseguiu sua carta de praça é fácil de saber porque ele mesmo revela com orgulho. Foi de uma maneira bem simples:
– Cheguei pra prefeita e falei: sou eleitor da senhora há muito tempo, está na hora de receber minha recompensa. Ela assinou e no dia seguinte eu já estava trabalhando de motorista de táxi.
Descendo, vou até o centro da cidade, bastante comercial. Um provérbio da região afirma: “se encontra de tudo em Guarabira”. Motos pra todo lado. Carros de som anunciando de tudo o tempo todo. As lojas Caruaru ostentam uma placa com uma loiríssima moça, decerto uma característica da cidade pernambucana. Há também as inescapáveis placas de salões de beleza, novamente com moças louras e seus lisíssimos cabelos. Haja escova marroquina. O comércio é surpreendente. Há de tudo mesmo. Até uma loja dos sanduíches Subway. Mas ainda se encontram sordas nos supermercados, um biscoito muito gostoso embebido em rapadura e que o pessoal aqui apelida de mata-fome. E pelo menos a funerária ainda mantém um tom tradicional e recatado: Sono eterno.
Vejo uma enorme banca no centro do calçadão e penso em comprar um jornal local. Lá havia de tudo, principalmente DVDs, brinquedos para crianças e muitos bonecos ligados a filmes e seriados americanos. Mas nem um mísero jornal ou revista. A dona gentilmente me informa que jornal só na revistaria ou na Rodoviária. Rumo para a revistaria, uma lojinha simpática, mas bem pequenina. Lá compro o Correio da Paraíba que estampa na sua manchete: TROTE NA UFPB FAZ APOLOGIA AO ESTUPRO. Ainda na primeira página, outra notícia de assustadora: o Açude de Boqueirão, que abastece Campina Grande e 18 outras cidades já está no volume morto, obrigando ao racionamento. Se a situação continuar assim, só haverá água até janeiro de 2017. Fico curioso com o anúncio de um festival chamado de Rock Cordel em Sousa, no alto sertão. Parece no mínimo interessante.
Caminho até uma linda pracinha onde está localizada a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz. Por falar nisso, que luz tem esse céu, não importa se do agreste, se do brejo. É um azul de lavar a alma. Não entro na igreja e sim no meu templo laico: a biblioteca municipal. Há uma grade estilo prisão na entrada, o que não é lá muito auspicioso. A bibliotecária me diz que é por razão de segurança, pois muitas pessoas são roubadas na praça em frente. Há alguns jovens estudando na biblioteca, um sinal de vida. E apenas meia dúzia de estantes. A fachada está bem deteriorada, ao contrário do prédio quase em frente, do Poder Judiciário local, onde a tinta brilha tanto que parece, com todo o respeito, uma casa de festas. Ao lado, uma linda casa branca com cerca eletrificada, é isso aí.
Passeio por um belo e amplo calçadão bem arborizado. Reparo no nome da via principal da cidade: Dom Pedro II. Como se fosse uma ironia, essa avenida central é cortada por uma ruazinha insignificante chamada XV de novembro. Uma aula de História.
Pelas ruas, uma mistura e tanto. O Banco do Nordeste ostenta a maior fila da cidade enquanto o Itaú fica com o vice-campeonato. Indiferente a agruras do orçamento alheio, um homem cavalga pela Dom Pedro II. E no meio do calçadão, vejo uma lona preta estendida no chão com feijão verde secando como se ali fosse o terreiro da fazenda. Em frente às padarias, homens despejam lenha. Será que os fornos ainda queimam árvores para fazer pão?
Em torno da cidade temos pequenos sítios e fazendas e alguns alambiques. Mas já pipocam os primeiros loteamentos e condomínios prometendo segurança e lazer, além de status. Logo o comércio, para manter a fama, terá raquetes de tênis na vitrine, sem falar no aumento espetacular da venda de cercas eletrificadas, câmeras de vigilância e cães amedrontadores.
Eu fui a Guarabira para um simpósio da ANPUH-PB, ou seção Paraíba da Associação Nacional de História. O campus em que aconteceu o encontro, é um modesto e muito simpático prédio no estilo romano, isto é: quadrado com um pátio central no interior. Isto cria uma disposição para o diálogo, para o encontro, já que as salas estão literalmente frente a frente, basta atravessar o arborizado pátio. Ali é o campus de Humanas da UEPB, Universidade Estadual da Paraíba.
E o que encontrei ali foi maravilhoso. Um dinâmico grupo de jovens professores da universidade organizou muito bem as atividades. À noite, mais de quinze mini-cursos. À tarde, mesas-redondas contando com um público animado e valente de cerca de 200 estudantes, que depois de ouvirem as exposições ainda ficavam fazendo perguntas por quase duas horas. A mesa de que participei, sobre a formação do profissional de História e sua ação social, durou cerca de quatro horas. É uma troca intensa de experiências e aprendi mais do que ensinei. Conheci Danilo, jovem professor de 26 anos que só entrou na escola pela primeira vez aos 18. Na voz e no olhar vi a paixão pela profissão, pois em suas palavras: “nós temos o privilégio de ter as pessoas olhando para nós, conversando conosco”.
De manhã, os simpósios temáticos, muito bem estruturados. Fui a um intitulado Mundos do Trabalho e as comunicações foram variadas e relevantes. Em uma sala simples com dois ventiladores, onde se sentia o forte e enjoativo cheiro da fábrica de rações para aves, passei uma manhã aprendendo. Emanuela pretende ensinar História a seus alunos e alunas por meio de processos que explicitam as lutas e conflitos das mulheres. Sabrina fez uma dissertação sobre um processo excepcional que uma mulher moveu em 1964 a despeito de tudo e de todos. Josinaldo, também mestre em História e se preparando para o doutorado, quer estudar o cotidiano dos cassacos, os trabalhadores que construíram a estrada de ferro. Seu pai foi um deles. Ele surpreende a todos com a descoberta de uma obra de ficção de um autor paraibano que trata da gente pobre do campo na década de 50 a partir da perspectiva dos trabalhadores, o que não é comum na literatura regionalista. Diognnys está utilizando processos da justiça do trabalho para estudar a exploração da mão de obra infantil na região.
Por fim, Ana Beatriz Ribeiro, professora da casa, faz um breve resumo de sua tese de doutorado, defendida no início deste ano. Fala sobre os acidentes de trabalho durante a ditadura, ponta de um iceberg de exploração, descaso, fome e autoritarismo. Ela explica todo o processo, desde o acidente até a “reabilitação para o trabalho”, passando pelas cartilhas de propaganda que basicamente culpabilizavam o trabalhador pelo ocorrido. Uma senhora aula sobre o país que Darcy Ribeiro intitulou de “Moinho de moer gente”. Para terminar, lembra-nos o dado estarrecedor: em 1972, dois anos depois do tri e em pleno “milagre econômico”, o Brasil foi campeão mundial de acidentes de trabalho. A própria Beatriz sofreu um ao manusear documentos carregados de fungos, o que lhe causou uma grave infecção ocular. Tudo pela História.
Ana Beatriz foi a organizadora do simpósio temático juntamente com seu marido, Tiago Bernardon. Tiago é daquelas pessoas que renovam nossa esperança na humanidade. Gaúcho, torcedor fanático do Grêmio (ninguém é perfeito), depois do doutorado acabou passando em um concurso para a UEPB de Guarabira. Logo se tornou o dínamo do Departamento de História, sempre trabalhando dentro e fora de aula para a melhora do curso. Atualmente trabalha na UFPB.
Só vou contar uma para vocês terem uma ideia. Um aluno o avisa de que a Junta de Conciliação e Justiça de Guarabira e Souza iria queimar 20 mil processos do período 1987-2003. Tiago não se conforma e costura um acordo. A JCJ topa ceder os processos à UEPB desde que a universidade retire os processos. Tudo ótimo. Só que a universidade não tinha transporte para isso. Acertou quem adivinhou que Tiago foi buscar as caixas e com os próprios braços as depositou no seu carro, em várias viagens, até que os 20 mil processos estivessem sãos e salvos na universidade. Isso é o que eu chamo de carregar a História nas mãos.
Algumas das exposições daquele simpósio temático foram feitas a partir desta massa de documentos que Tiago salvou. Claro que depois ele foi essencial na criação do NDH, Núcleo de Documentação Histórica da UEPB, onde os documentos estão sendo organizados, tratados e disponibilizados para as futuras gerações de historiadores.
À noite, como eu disse havia os mini-cursos. Fui assistir um com o Prof. Ângelo Pessoa sobre o uso da música em sala de aula. Ângelo é outro apaixonado, ou melhor, alucinado pela profissão de historiador e de professor. Sua aula se iniciou com preciosas lições metodológicas sobre como utilizar o documento musical. Em seguida, ele faz um histórico, fartamente ilustrado com imagens que ele pesquisou durante semanas, da evolução dos aparelhos de reprodução sonora. Duas horas e meia se passam voando e a maioria dos alunos ainda ficaria ali por mais tempo, caso não tivessem que embarcar nos ônibus das prefeituras das cidades vizinhas. Além do esmero na preparação do curso e da profunda erudição musical, Angelo chamou a minha atenção por outro motivo. Há quatro anos, juntamente com mais três colegas ele saiu da pós-graduação em forma de protesto contra o produtivismo e o privilegiamento do programa de pós-graduação em detrimento da graduação. Pior para a pós-graduação, que perdeu um daqueles professores insubstituíveis. Hoje Angelo coordena o PIBID na UEPB de Guarabira, programa que permite que os alunos tenham o primeiro contato com a sala de aula e ao mesmo tempo lança uma ponte entre a universidade e as escolas. Esses estudantes estão em ótimas mãos, afora a tendinite que o Prof. Ângelo adquiriu ao preparar obsessivamente o material do mini-curso.
Para saber quem são os estudantes, vou contar apenas uma história. No simpósio temático que assisti, um aluno chega um pouco atrasado, rosto sério, quase solene. Em meio aos debates, conta a história do seu avô, que trabalhava no campo. Quando o fazendeiro morre, seu herdeiro comunica ao avô do aluno as novas “condições”: o avô e a família passarem três dias trabalhando de graça na terra do “senhor” (este é o termo que o neto usa) e sua avó trabalhar de domingo a domingo como cozinheira na casa do patrão. O avô dele se recusa e ainda responde:
– Mande a sua mãe trabalhar na cozinha, porque mulher minha não vai trabalhar na cozinha de ninguém.
Muitos dos alunos são agricultores ou filhos de agricultores, vêm de famílias simples e o estudo representa muito para eles.
Na noite de abertura do Simpósio, assisti a uma ótima palestra da presidente da ANPUH nacional, Profa. Maria Helena Rolim Capelato. O debate, todo em torno do Escola Sem Partido, foi absolutamente eletrizante, com intensa participação do público. A certa altura, a Profa. Capelato se perguntou como nós não fomos capazes de perceber a formação da onda conservadora, na verdade um tsunami reacionário que ameaça varrer as parcas mas fundamentais conquistas dos últimos tempos.
Ninguém tinha a resposta. Talvez ela esteja no que vi em Guarabira. Não me refiro às cercas eletrificadas, aos condomínios fechados ou à estátua do Frei Damião. Refiro-me a um humilde e decente campus no interior da Paraíba fervilhando de ideias. Com profissionais competentes e dedicados como Ana Beatriz, Tiago, Ângelo e muitos outros. E principalmente uma multidão de jovens descobrindo a História … O que eu vi nestes intensos e inesquecíveis quatro dias pode ser a resposta não somente para derrotar o Escola Sem Partido. Mas para finalmente construir uma escola que tome o partido da construção de uma nação que trate a todos com um mínimo de dignidade e respeito. O lado B de Guarabira é a resposta.