Histórias do Alvito
A FRALDA DE PANO E A DITADURA DIGITAL
Devo me mudar em breve. Entrei em contato com o síndico do prédio onde moro no momento, é um sujeito boa praça, faz o possível. Ele tem físico de lutador de luta livre mas é educado e sempre sorri. Ao menos para mim, que o chamo cariocamente de presidente. Ele nunca se queixou do tratamento.
Pois bem, pedi a ele que me dissesse como poderia marcar a data da minha mudança. Fácil, disse ele. Primeiro você entra no site da administradora, se cadastra e pega um login. Depois entra no site do síndico online (ou coisa parecida), usa o login e aí você marca uma data.
Eu prefiro protestar com humor, dá mais certo e mantém o alto astral. Mandei essa:
— Presidente, quando eu nasci a fralda não tinha código de barra, era de pano até, com alfinete…
Acho que deu certo porque ele reverteu ao saudoso mundo do caderno e caneta e disse que iria verificar se a data escolhida por mim estava livre. Simples assim.
Eu comecei a usar computadores (ou quase isso) em 1988, lá se vão quase 40 anos. Estou em plena posse das minhas faculdades mentais (embora não saiba bem o que isso significa), estudei e continuo estudando a vida toda. Não sou contra computadores e os utilizo ao máximo dentro das minhas necessidades. Mas às vezes sinto dificuldade com tantas senhas, logins, códigos e o raio que o parta. E é tanto tempo que a gente perde nesses labirintos digitais que a OMS devia criar a figura da “tortura digital”.
Por exemplo. No novo prédio a fechadura é digital. Você simplesmente digita os números mais um sinal e voilá, a porta está aberta. Acontece que se você deixar seu dedinho um décimo de segundo a mais a fechadura compreende que você digitou o número duas vezes. É a burrice artificial total. O sujeito que programou deve ter dedos de pianista, velozes como mergulho de gaivota. Se eu sinto saudade duma boa e velha chave?
Eu me recuso a fazer cadastros agora. Para não ter que perder mais tempo da minha vida digitando senhas. Mas não consigo escapar da burocracia. Devo ter passado umas cinco semanas da minha vida fornecendo o meu cpf. E mais não sei quantas dando o endereço, o número da carteira de identidade. Somando, deve dar uns três meses que eu preferia passar em Paris. Tudo porque vivemos sob um controle total, até o supermercado quer registrar os queijos que você compra. Eu entrego: Minas, Gorgonzola, Brie e Parmesão ralado grosso.
Quase perdi totalmente a vontade de ir a shows, porque cada um é em um site diferente e em todos eles você tem que preencher o cadastro, criar uma senha etc e tal. O cinema é a mesma coisa, apps, login, senha, arghh. Prefiro ficar em casa ou ir a um bar qualquer com música ao vivo em que pago a despesa com cartão e aproximação driblando a maldita senha.
E ainda tem o digitalês, bem na tradição da novilíngua de 1984. Você compra numa loja, dá todos os seus dados, aquela lenga-lenga toda. Um mês depois vai fazer outra compra e a moça te pede tudo de novo. Você não entende e ela explica: o sistema atualizou. É um novo sentido para o verbo atualizar: perderam todos os dados e você que ature fornecer tudo de novo.
O mais dramático disso tudo, na verdade, é que há pessoas muito mais velhas do que eu, com muito menos escolaridade, com muito menos oportunidade de ter contato com computadores. Elas vivem em meio a uma verdadeira ditadura digital, em que até as coisas mais simples parecem impossíveis.
Um último caso. Sou funcionário público há exatos 40 anos. Inicialmente o holerite ou contracheque era impresso e colocado no nosso escaninho ou enviado pelo correio. Depois criaram um site em que você buscava seu contracheque e o baixava em pdf. E, se fosse o caso, imprimia para comprovação de renda. Mas todo governo quer inventar. O governo da Besta literalmente sumiu com o contracheque no site. Já havia vídeos na Internet com passo-a-passo para encontrá-lo. Veio o governo Lula. De forma muito simpática, assim que você entra, lá está o seu contracheque. Mas não é em PDF, é uma página da Internet que bancos e afins não aceitam. E, por incrível que pareça, só aparece seu nome: “Marcos”.
Tive que buscar a assessoria de uma mocinha da imobiliária que me solucionou o enigma:
— O senhor clica em “Evolução remuneratória”
Sinceramente. “Evolução remuneratória”? Pensei que fosse um gráfico da perda do poder aquisitivo dos professores ao longo do tempo. Não podia ser: “Clique aqui para ver seu contracheque em PDF” ?
De forma alguma. Para os ditadores digitais, quanto mais difícil, melhor.
Reclamações? Favor preencher o cadastro, fazer login e escolher uma senha…
P.S: Sei que é um período de transição. Nós, os dinossauros analógicos, somos uma espécie em extinção. Mas a turma da era digital nunca vai saber o que era a delícia de entrar numa fila de cinema, dizer o nome do filme no guichê, pagar com dinheiro e pegar o ingresso. Só isso. Era decidir acerca da pipoca e assistir ao filme. Ainda dava para guardar o ingresso de recordação.