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Histórias do Alvito – A TORCIDA DE UM SÓ

Histórias do Alvito
A TORCIDA DE UM SÓ
Lá estava ele, ocupando um setor inteiro da arquibancada do estádio, isolado da torcida adversária por grades e vigiado-protegido por cinco policiais. Em um início de noite gélido no sul de Minas, a Ferroviária de Araraquara visitava o Pouso Alegre Futebol Clube e a Locomotiva tinha apenas um torcedor, um sujeito muito pouco previsível chamado Marcos Alvito. Não era só pelo futebol, uma partida da Série D, quarta divisão do Campeonato Brasileiro. Aliás o futebol é sempre mais do que os jogadores, a bola, o juiz e os bandeirinhas. Para a animada torcida local, cujo time leva o nome da cidade, trata-se de uma questão de identidade. E para mim? O que eu tenho a ver com a Ferroviária de Araraquara? Como fui parar ali naquele sábado depois de viajar seis horas e meia no burrinho?
Corta para 2013, época da Seleção Brasileira de Escritores, tema para outro texto. O que importa é que em um treino eu peguei no pé de um dos nossos mais habilidosos meio-campistas, um jornalista de primeira chamado Rodrigo Viana. Como ele é de Araraquara, cismei de chamá-lo de ferroviário. Com a gentileza que o caracteriza, Rodrigo me pediu que não fizesse isso, pois a Ferroviária era muito importante na vida dele desde pequeno. O caso terminou em risadas e troca de camisas. Depois disso, nunca mais nos vimos.
Quer dizer, nunca mais até o início deste ano, quando passei por Araraquara e fomos tomar um café e bater um papo delicioso, porque Rodrigo é um rosiano apaixonado, com perdão da redundância. À época ele estava muito preocupado com sua mãe, na fase terminal de uma doença, internada há meses. Semana passada, Rodrigo perdeu sua mãe.
Telefonei para tentar transmitir algum calor humano e fiz uma promessa. Haveria de voltar a Araraquara para ver um jogo da Ferroviária com meu amigo no estádio que tem esse nome sublime de Fonte Luminosa. A Ferroviária é um time tradicional em São Paulo e tem uma ligação muito forte com a cidade. Como o nome do clube é Associação Ferroviárias de Esportes, seus torcedores são chamados de “afeanos”, os que vestem com orgulho a bela camisa grená. Em termos do interior paulista, a Ferroviária é uma equipe forte, mas que já teve melhores momentos.
Rodrigo, além de ser apaixonado pela Locomotiva, sempre se dedicou a pensar a relação entre futebol e literatura e tem um livro sobre o futebol na crônica brasileira: O futebol e o verbo. Mantém um blog esportivo muito ativo e frequentado, quase que exclusivamente sobre a Ferroviária. Em suma, sua alma é grená. Por causa disso, numa sexta-feira à tarde tive a ideia de ir em segredo a Pouso Alegre, no sul de Minas, para torcer pelo time do meu amigo.
No sábado em que viajei para apoiá-la, a Ferroviária se encontrava em 5o. Lugar no seu grupo e ia enfrentar o líder, o Pouso Alegre F.C. A parte mais bonita da viagem foi subir a Serra da Mantiqueira e de lá descortinar parte desse planeta montanhoso chamado Minas Gerais. São tantas elevações que parecem até gigantescas ondas verdes. Passei pela simpática Santa Rita de Sapucaia e segui até o meu destino.
Sabem aquela pessoa que engorda e não cabe mais nas roupas, as banhas transbordando, os tecidos ameaçando rasgar? Pouso Alegre tem uma origem antiga, a região foi frequentada por bandeirantes e no centro da cidade há o belo prédio do Teatro Municipal, datado de 1875, a comprovar a riqueza do burgo que já tinha sido elevado à categoria de cidade em 1848. Hoje em dia, entretanto, sua rua principal é um vespeiro tão movimentado quanto a rua da Alfândega na véspera do Natal. Simplesmente não consegui simpatizar com a cidade. Por dois motivos: pela ausência quase absoluta de árvores, o que torna tudo árido e triste. E também por ser tão labiríntica quanto Montes Claros. Não duvido que aqui (estou escrevendo no hotel) o pessoal precise do Uaize ou do Guglimapi para ir à padaria.
A rua que leva ao estádio é um bom exemplo, tem tantas árvores quanto o Liso do Sussuarão versão Medeiro Vaz. Ao menos estava colorida pelos animados torcedores do time da casa. As cores, preto e vermelho, ressoam no meu coração rubro-negro, mas hoje eu sou torcedor da Locomotiva e estamos conversados. Havia dois tipos de ingressos: arquibancada coberta, a quarenta e arquibancada descoberta, a vinte. Comprei meu ingresso com desconto de coroa. Quase esqueci, pois quem estava ali era o menino de doze anos apesar da carcaça 6.1.
Logo na entrada, o primeiro problema: eu não podia entrar com a Nikon. Era um objeto pesado demais que poderia ser utilizado para agredir alguém. Conversei com o superior do soldado e com o superior do superior, mas não teve jeito, tive que guardar a câmera no carro. Entrei com máquinas semelhantes nos estádios da Inglaterra, mas em Pouso Alegre não pude entrar. Comecei a desconfiar que aquele pessoal sofria de excesso de normas, algo que costumo chamar, traduzindo do inglês, de retenção anal. É a turma que não consegue nem fazer número dois porque não gosta de liberar nadica de nada.
Fui ao carro e voltei. Perguntei ao policial, em alto e bom som, onde era o local reservado à torcida da Ferroviária. Ficava do outro lado, atrás do gol onde havia o placar do estádio. Mais um problema, porque tive que atravessar as grades de ferro que separam os setores até conseguir me postar ali, gloriosamente, a torcer pela Ferroviária. Parece que viria um ônibus de afeanos, mas devem ter desistido ou tido algum problema.
Como vocês sabem, não gosto de homem, sobretudo de grupos de homens. Além de prestar uma homenagem a meu amigo Rodrigo, além de estar finalmente vendo meu primeiro jogo da Ferroviária, experimentei uma sensação deliciosa de um kamikase enfrentando a horda de milhares de torcedores adversários. Bem, na segurança do estádio gradeado e da minha guarda pessoal de cinco policiais militares.
A torcida deles é animada, tem bateria, bandeiras e faixas dos Dragões da Mandu. O estádio se chama Manduzão por conta do rio Mandu, que passa ali perto. Infelizmente eu não estava com meu pandeiro – que provavelmente seria barrado, mas também fiz um bocado de barulho com gritos de — Vamos, Locomotiva! e os inescapáveis — Isso foi pênalti, seu juiz safado! Fui filmando os lances de ataque da nossa equipe, narrando e comentando para o meu amigo.
Começamos mal. Nos primeiros dez minutos fomos sufocados com cruzamentos sobre a área. Depois a Locomotiva, em um impecável uniforme branco, dominou a partida com um bom posicionamento em campo e um toque de bola envolvente, com boas penetrações pelo lado esquerdo. Tanto que o time deles saiu para o intervalo vaiado, enquanto a torcida da Ferroviária aplaudia com as únicas duas mãos presentes.
Coroas, como é sabido, tem uma maior necessidade de manutenção do sistema hidráulico. Descobri que no meu setor, ou seja, no setor da torcida visitante-adversária-inimiga-desgraçada, não havia banheiro. Nem tampouco lugar para comprar água ou comida. Expliquei a questão à policial encarregada da minha vigilância. Ela me enviou ao setor mais próximo escoltado por dois seguranças. Comprar uma reles garrafinha de água foi ainda mais complicado. Você tem que comprar um cartão de cinco reais para poder comprar bebidas e alimentos dentro do estádio. E dá-lhe Lacto Purga…
Voltei para a minha cidadela grená e aceitei o convite do senhor que cuida do placar para um bate-papo, pois o segundo tempo foi morno, as duas equipes pareciam aceitar o empate. O placar é manual e Seu Paulo me mostrou o que há atrás do placar: um cemitério de placas com números esperando serem transformados em gols, vitórias e, se derem sorte, em títulos. Depois de dez minutos de conversa me revelou, com um sorriso maroto, seu apelido: Pachola. Como dez entre dez craques, teve a carreira abreviada por um problema no joelho ao pisar em um buraco no campo que ali havia antes de construírem o estádio, que hoje é da prefeitura. Sim, claro que futebol dá voto.
A partida terminou em um chocho zeroazero. Eu guardei no bolso do casaco o cachecol colorido que poderia facilitar o meu reconhecimento por alguém da turba adversária. Não parava de pensar na surpresa que causaria ao meu amigo. Saí do estádio com a abertura de dois exclusivos portões vermelhos, que obviamente deveriam ter sido pintados de grená.
Pois a Ferroviária de Araraquara merece. E meu amigo Rodrigo Viana também.